31 de março de 2020

"Como homens"

"Todos vamos morrer um dia" — as palavras de Jair Bolsonaro para justificar o fim do isolamento dos cidadãos e o regresso ao trabalho definem o cúmulo da irresponsabilidade face à ameaça do coronavírus. Nessa medida, não podem deixar de intensificar a perturbação deste nosso presente. Ao mesmo tempo, deixam-nos um lastro terrível, terrivelmente político.
Rechaçar a mediocridade das considerações do Presidente do Brasil sobre o COVID-19 não é, de modo algum, uma questão que se encerre neste combate de todo o planeta. A sua ligeireza existencial, com ou sem requebros machistas ("enfrentem o vírus como homens"), não é um dado que só agora se tenha tornado transparente. Nessa medida, politicamente, a pergunta que surge é de outra natureza. A saber: como devolver àqueles que elegeram Bolsonaro a insensatez do seu discurso?
Politicamente, eis a questão. Mais desastroso ainda seria pensar que as arbitrariedades de comportamento de um líder político se "explicam" ou "desmontam" através de um simples exame crítico da sua personalidade.

30 de março de 2020

Desobediência

A expressão "desobediência social" reentrou no nosso quotidiano. Por ponderosas e muito democráticas razões: os erros de um cidadão, mais ou menos (in)conscientes, podem afectar um impressionante número de cidadãos.
Contradição insolúvel: nunca a noção de "social" foi considerada com o mesmo rigor quando, supostamente, apenas o vivíamos "em rede". Agora compreendemos que a rede somos nós, não a pueril proliferação de polegares ao alto.

29 de março de 2020

Algarve

Hans Castorp visita o primo "lá em cima": para ele, a doença parece adequar-se ainda a um mapa racional em que a ameaça do mal se pode dizer através de uma geografia claramente hierarquizada. Provavelmente, os que partem para o Algarve são os derradeiros naúfragos, incautos, tristemente infantis, da narrativa de Mann: algo neles acredita que "lá em baixo" será tudo diferente. Mas pedir-lhes para lerem A Montanha Mágica seria absurdo, porventura arrogante. Acontece que a literatura se tornou o elo mais fraco do nosso imaginário.

28 de março de 2020

O Papa e o seu teatro

O discurso solitário do Papa Francisco na Praça de São Pedro, no Vaticano, confirma-nos um ancestral axioma histórico: a religião é também um teatro.
Não se trata de ceder ao eventual cinismo de um ateu, nem de seguir o pendor metafísico de um crente. Apenas de celebrar a dimensão mais terrena de qualquer teatralidade. Em boa verdade, a possibilidade de relação com o sagrado envolve sempre, em todas as religiões, dispositivos materiais de organização de determinados gestos, próprios dos humanos, desejando, pressentindo ou mimando a atenção da divindade. Enfrentando a frieza austera do seu cenário, Francisco soube relançar, assim, a energia do seu discurso urbi et orbi — a cidade e o mundo existem como aliança simbólica desenhada entre a evidência do concreto e o poder da abstracção.

27 de março de 2020

Dylan

Subitamente, caída do céu virtual, chega uma canção de Bob Dylan. Chama-se Murder Most Foul e evoca o assassinato de John F. Kennedy como uma tragédia que mobiliza os poderes universais do imaginário americano e, por isso mesmo, uma avalanche de memórias musicais.

You got me dizzy, Miss Lizzy. You filled me with lead
That magic bullet of yours has gone to my head
I'm just a patsy like Patsy Cline
Never shot anyone from in front or behind
I've blood in my eye, got blood in my ear
I'm never gonna make it to the new frontier
Zapruder's film I seen night before
Seen it 33 times, maybe more
It's vile and deceitful. It's cruel and it's mean
Ugliest thing that you ever have seen
They killed him once and they killed him twice
Killed him like a human sacrifice

Não sabemos a data da composição e do seu registo. Dylan diz-nos apenas que "esta é uma canção inédita que gravámos há algum tempo e que vocês poderão achar interessante". O certo é que a sua súbita circulação na paisagem do nosso recolhimento virtual possui um singular efeito libertador.

We ducked inside the doorway, thunder crashing
As majestic bells of bolts struck shadows in the sounds

(1964, Chimes of freedom)

E-s-t-a-d-o

A ideia de que o Estado é responsável pela saúde pública não pode ser formulada como se se tratasse "apenas" de exigir aos organismos estatais que respondam automaticamente, e sem falhas, a uma situação de excepção que ninguém podia antecipar. Em boa verdade, a urgência da situação que estamos a viver, e sobreviver, expõe a nossa carência de um novo pensamento de Estado — tarefa de impossível superação quando cada um sabe que o seu semelhante pode estar a morrer.

25 de março de 2020

Politicamente

Não apenas pensar a política, mas pensar politicamente — o voto de Godard adquire renovada e perturbante actualidade. Quando penso, qual o compromisso que assumo com os outros? Ao assumi-lo, como defino a dimensão política da minha própria história? E o que é isso de ter uma história particular no interior da história mais geral da comunidade?
Assim: "Penso que somos sempre responsáveis pelos nosso actos. E livres. Levanto a mão — sou responsável. Viro a cabeça para a direita — sou responsável. Sou infeliz — sou responsável. Fumo um cigarro — sou responsável. Fecho os olhos — sou responsável. Esqueço que sou responsável, mas sou." (Nana/Anna Karina, Viver a sua Vida, 1962).

Um novo pudor

Nas ruas, olhamo-nos com os olhos de um novo pudor, medindo distâncias, definindo fronteiras que importa respeitar. Afinal, o social nunca existiu "em rede" (ilusão infantil partilhada por milhões de pessoas, partilhando imagens de férias, receitas culinárias e impropérios políticos muito pouco disponíveis para pensar politicamente). O social faz-se desta inevitabilidade de sermos corpos à procura de um sistema que integre o corporal, excedendo-o em pensamento e acção. Não estávamos preparados para tão austera aprendizagem. Não sabíamos da humildade que ela nos exige.

24 de março de 2020

Walking dead

Por distracção ou soberba, gostamos de menosprezar as ficções menos realistas como acontecimentos descartáveis, ainda que vocacionados para a satisfação de uma futilidade que, estupidamente, exibimos como marca lúdica de superioridade existencial. Enganamo-nos, claro. E tanto mais quanto o nosso engano se exibe mascarado por um imaginário social da gratificação por qualquer preço. Acontece que as ficções se vingam: por estes dias, The Walking Dead é apenas um espelho riscado da nossa clausura — e da força maligna do outro.

23 de março de 2020

Globalização

Pedagogia compulsiva — os laços sociais persistem: vemos os outros através das imagens de computador, falamos com eles, trabalhamos no mesmo trabalho, enfim, resistimos à pandemia, habitando o espaço virtual. A utopia global está concretizada: tudo comunica com tudo. Mas não era bem isto que nos prometeram.

22 de março de 2020

Tele-Estado

Eis um axioma destes tempos difíceis: o Estado é a televisão, a televisão é o Estado.
Infelizmente, tornou-se quase impossível pensar tal enunciado no interior do espaço profissional do audiovisual e, em particular, através das lógicas dominantes do trabalho jornalístico. Porquê? Porque a profissão, precisamente, reagirá globalmente ofendida, perguntando: "Porque é que a televisão tem sempre a culpa de tudo?" (a pergunta é uma variante dos debates, televisivos, em que alguém suscita a necessidade de pensar os grandes temas sociais sem excluir a televisão, sendo imediatamente aquietado pelo moderador que lembra que "estamos a falar de questões de âmbito social, não de televisão, muito menos de jornalismo").
Ainda assim, retenhamos o sintoma manifestado por quem reage, colocando-se na posição de acusado de alguma "culpa". No plano da argumentação comunicacional, considerar que o Estado é a televisão, a televisão é o Estado, não envolve qualquer atribuição de culpa, muito menos o apelo a qualquer cenário de tribunal. Até certo ponto, é mesmo o reconhecimento de um frágil e bem-vindo mecanismo de compensação, ainda que perverso, gerado pelo enfranquecimento das estruturas e valores do Estado clássico (enfim, do Estado tal como o aprendemos nos bancos da escola): não havendo um sólido sistema estatal de relações entre os cidadãos, a televisão ocupa o lugar desse sistema.
Daí a pergunta didáctica: como é que acontece essa ocupação? Sem centro à vista, importa reconhecer, de modo incerto e arbitrário, para não dizer selvagem.
Dito de outro modo: não se trata de favorecer qualquer noção maquiavélica ou conspirativa, sugerindo que algures, alguém, indivíduo ou grupo, domina, controla e aplica os valores desta reinvenção audiovisual do Estado, manipulando-nos como peões de um xadrez cujo tabuleiro não abarcamos. De forma bem diferente, diferentemente perturbante, o que acontece é que, mesmo em democracia (talvez mesmo sobretudo em democracia), nada do que seja acção estatal consegue existir e, de alguma maneira, ser legitimado sem a sua passagem e contaminação pelas linguagens televisivas.
A conjuntura é tanto mais vulnerável quanto, por princípio, a maior parte dos agentes envolvidos recalca o simples reconhecimento da sua dependência do(s) outro(s): as estruturas televisivas definem-se como oráculos castos de "informação", resistindo a pensar-se como agentes de quotidiana configuração e reconfiguração do espaço social; os poderes políticos tendem a encarar a paisagem televisiva como veículo igualmente casto de intervenção nesse espaço, afinal esgotando a respectiva vocação social na "difusão" das suas próprias mensagens. Que todas as nossas formas de existência — incluindo a pueril entronização dos ídolos do futebol ou a obscena representação da sexualidade nos programas da chamada "reality TV" — sejam definidas (e actuantes) a partir de mensagens televisivas, eis o que nem uns nem outros arriscam enfrentar.
Daí a actualidade destas palavras:

Devemos exigir que se abra, no seio das televisões europeias, um autêntico debate sobre a missão da televisão, sobre as pesquisas a desenvolver para inventar as novas linguagens que, em função de um grande número de sinais, somos levados a pensar que são aguardadas pela sociedade contemporânea. A minha experiência pessoal leva-me a pensar que um tal debate não será possível a não ser no interior das televisões do Estado.

São palavras de um homem que amou (e aplicou) os poderes realistas das imagens e dos sons: Roberto Rossellini. E, em boa verdade, se isso nos pode servir de algum arrevesado conforto, foram escritas num mundo sem COVID-19 — datam de 1972. 

Números

Há qualquer coisa de infinitamente perverso na normalização da contagem diária que o coronavírus instalou no nosso quotidiano: número de infectados, número de hospitalizados, número de mortos... Perverso no sentido primordial da palavra: a perversidade como desvio a uma norma. No limite, acomodamo-nos a esta nova aritmética, desviando-nos da ideia segundo a qual o humano excede qualquer quantificação que o queira integrar.
Reconhecê-lo não salva ninguém, como é óbvio; o certo é que, salvo melhor opinião, também não ameaça a vida seja de quem for. Resta saber se estamos a entrar numa nova cultura das quantidades, com vírus e para lá do vírus.

20 de março de 2020

De que falamos
quando falamos de Estado?

"O Estado sou eu" — a frase atribuída a Luís XIV terá sido desmentida pelo próprio quando, nos seus momentos finais, lembrou que, para lá da sua morte, o Estado iria persistir. Em boa verdade, tudo isso ecoa no nosso presente, não como uma lição histórica, ainda que irónica, antes como um desarranjo mitológico cuja ambiguidade, voluntária ou não, passa ao lado da nossa urgência. O mesmo se dirá do triunfalismo leninista, proclamando "o Estado somos nós", mascarando a estreiteza comunitária da sua primeira pessoa do plural.
Recebemos agora a lição mais ingrata, e também mais pedagógica. Iludidos pelo crescimento agressivo do espaço virtual — como é possível que a obscenidade da expressão "rede social" tenha sido acolhida e integrada como uma natureza sem mácula? —, desistimos de pensar o sistema de relações entre o "eu" e o "nós". Seria preciso o pressentimento da morte para atentarmos na sua importância gramatical e social. C'est fait.

Viver

"Todas as artes contribuem para a maior de todas as artes, a arte de viver" (Brecht).
Alle Künste tragen bei zur größten aller Künste, der Lebenskunst.
O fascínio de não saber alemão.

19 de março de 2020

Palavras

A espectacular evolução do mundo audiovisual, com toda a sua galáxia virtual (de que somos nómadas compulsivos, por vezes felizes), instalou um lugar-comum, misto de novo-riquismo e ignorância, com que alguns políticos e intelectuais, influencers e opinantes de coisa nenhuma, aconchegam a nossa distracção. A saber: "vivemos num mundo de imagens". Bruscamente, descemos à terra, reconhecemos a insuficiência de tal formulação e compreendemos que as imagens são também — serão mesmo sobretudo — o modo como delas falamos, a labiríntica verbalização que delas nos aproxima ou distancia. Será um modo trágico de o redescobrir, mas as palavras estão aí. "Elas vivem", como no filme.

18 de março de 2020

"Guerra"

O vírus fez com que a palavra "guerra" reentrasse no nosso quotidiano. Em boa verdade, não sabemos o que fazer com ela, sentimo-la como excrescência de uma linguagem que nos incomoda, de tal modo a cultura dominante de festa & juventude nos faz repelir tudo o que remeta para a intratável espessura da história colectiva. A Primeira Guerra Mundial, por exemplo. Para muitos, a sua memória é mesmo um quadro pitoresco sem história, enquanto o segundo conflito mundial não passará de um género cinematográfico ou, pior um pouco, um delírio virtual que o imaginário bélico dos videojogos reproduz através de cenários intermutáveis em que todas as responsabilidades se diluem. Enfim, a Guerra Colonial portuguesa é repelida como um atropelo à imagem redentora e simplista do 25 de Abril como esse dia "mágico" em que, por anónimo decreto, toda a nossa história passada teria sido enterrada — sem mortos, sem guerra.
Agora, a palavra "guerra" diz-se na sua dimensão mais intratável: ainda que nela pressintamos a urgência dos gestos colectivos que o presente nos impõe, aplicá-la é também protagonizar um sobressalto de linguagem que intensifica a nossa solidão.

Silêncio

A chama a acender no fogão.
A respiração na almofada.
O som das patas da gata, pulando da secretária, encontrando a madeira do chão.
As folhas das árvores agitadas pela brisa.
A tua respiração. A minha respiração.
Há um outro silêncio a envolver os sons do quotidiano. Porque há menos ruído, claro. Mas sobretudo porque o aparato social deixou de se definir a partir da possibilidade de algum encontro, sendo pedagogicamente vivido como uma geometria de insuperáveis distâncias.
A utopia matemática consola-nos com o radicalismo da sua poesia: as linhas paralelas preservam uma insuperável distância na imperfeição do nosso mundo, mas irão cruzar-se no infinito.

17 de março de 2020

Matematicamente

O fascínio dos modelos matemáticos confunde-se com o fascínio da própria matemática. Eis um "segredo" bem conhecido dos que estudaram matemática e que dela fizeram (ou pensaram fazer) um modo, não apenas de trabalhar, mas de pensar toda a sua existência. Daí o misto de curiosidade e inquietação com que vamos recebendo a abordagem da evolução do vírus através da precisão metódica dos modelos matemáticos — da evidência ameaçadora do dia seguinte à contaminação de todos os habitantes do planeta, todas as variações parecem possíveis.
Que possamos todos morrer, eis uma hipótese que, a confirmar-se nos próximos meses, já nem poderemos saudar, saudando aqueles que a anteciparam. Que entremos numa cruzada de negação da inteligência matemática, eis a estupidez que convém evitar.
Acontece que, por efeito da consagração dos "especialistas" (vício endémico da nossa sociedade, aberta a todos os determinismos redentores), os matemáticos correm o risco de ser integrados na voragem mediática como oráculos de um futuro necessariamente apocalíptico. Abstraídos de qualquer contextualização social, poderão passar, incautos, de admiráveis militantes da inteligência a sacerdotes do niilismo com que gostamos de mascarar as nossas humanas vulnerabilidades.

16 de março de 2020

Em rede

Por estes dias, a palavra "solidariedade" circula como factor de uma urgência que ninguém nega. O certo é que a premência da sua circulação arrasta a sensação incómoda de que não estamos a aplicar um valor seguro, antes a tentar recuperar algo que andava perdido.
Daí a perturbação de uma pergunta política, agora reconvertida em amarga dúvida existencial: como passar da abstracção do social em rede para o concreto do social das matérias e dos corpos?
Não se trata de demonizar os domínios virtuais da comunicação, apenas de reconhecer os ancestrais valores das redes realmente sociais em que se joga a vida e a morte dos cidadãos. Tempos cruéis.

Da pureza

O que é, afinal, uma troca social? Ou ainda: sendo qualquer forma humana de existência um regime de trocas, de que nasce e como funciona isso a que chamamos social?
Subitamente, o COVID-19 impõe-nos um social de cruel ambiguidade: para que a sua lógica funcione, isto é, para que resista, é-nos exigido que as trocas comuns, a começar pelas que definem o comércio quotidiano dos alimentos, sejam escassas e austeras e, sobretudo, que não haja trocas físicas: o corpo do outro é, agora, meu inimigo potencial — e tanto mais quanto o mal que nele possa existir vem do interior, da intimidade da respiração, daquilo que o faz ser, afinal, uma entidade biológica igual a mim. E o meu corpo, claro, responde como inimigo do outro.
Quem ousar lembrar as histórias lendárias em que os amantes vivem formas de mútua devoração afectiva, indissociáveis de radicais entregas físicas — de Romeu e Julieta (Shakespeare) a A Idade da Inocência (Wharton/Scorsese) —, corre o risco de ser apontado como elemento disruptivo, quer dizer, perigosamente romântico.
A vitória sobre o vírus, por todos ansiada, vai implicando, assim, o reforço de uma reconversão fisiológica (a que o enquadramento simbólico da sexualidade não ficará alheio) em que a codificação dos comportamentos se apresenta inseparável de uma normalização, não da pureza, mas através da pureza.
Isto porque nos tornámos soldados de uma guerra santa contra todas as impurezas. Mesmo no futebol, já tínhamos aprendido a menosprezar as componentes aleatórias de um lance — na maior parte dos casos, um golo passou a explicar-se mesmo pela "falha de marcação" cometida por algum incauto protagonista (e por que será necessário explicar um golo?).
Há um novo imaginário social, paradoxalmente ou não sancionado pelo valor insubstituível da liberdade democrática, que impõe que não falhemos a nossa marcação. A cidadania define-se a partir do gesto de ocupação da "marca" que nos está destinada.

15 de março de 2020

O novo social

Bruscamente no Inverno que já é quase passado: o COVID-19 instalou-se no nosso quotidiano como novo sistema de organização social. De tal modo que o fundamental aparato de combate ao vírus, envolvendo controlo, vigilância e pedagogia, não pode deixar de arrastar um perverso efeito de reconversão do calendário de 2020. E mais além.
Dir-se-ia que a extrema rarefação dos contactos sociais, a que agora somos compelidos em nome da defesa da comunidade, nos devolveu uma entidade, o corpo, cuja irredutibilidade se tinha naturalizado e, de algum modo, liofilizado no labirinto dos prazeres virtuais. O social "em rede" está, assim, exposto na sua agressiva simulação identitária — somos mais que um corpo, garantem-nos todas as metafísicas, mas nunca menos que um corpo.
O programa crítico que estipula a possibilidade de seguir as ideias do "meu corpo", enunciado por Roland Barthes há quase meio século, "porque o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu", envolve agora, mais do que nunca, a nitidez do horizonte da morte. Talvez que o autor de O Prazer do Texto visasse também a reconquista, não apenas filosófica, mas eminentemente social, de um pensamento da morte e para a morte. E da energia telúrica que tal pensamento pode envolver. Consulto a memória das datas e verifico que Barthes faleceu em 1980, completar-se-ão 40 anos no dia 26 de Março — lembro-me onde estava e de quem me deu a notícia da sua morte.