30 de junho de 2020

Virose

Novo vírus: o autocarro do Benfica circula por vários canais televisivos — em apoteótico directo, confirmando que os autocarros das equipas de futebol se tornaram uma pandemia mediática (aliás, convém precisar: os autocarros das únicas três equipas de futebol que existem no país).
Entretanto, será que alguém está a estudar uma vacina?
Em todo o caso, ficamos a saber do drama profundo que pode alterar de forma radical a história da nação: à espera do veículo, uma dezena e meia de adeptos manifestam a sua indignação. Há mesmo duas palavras que foram apropriadas pelo mundo do futebol, só aí adquirindo a sua incontestável pertinência social: sofrimento e indignação, respectivamente de jogadores e adeptos.

29 de junho de 2020

A coisa

Mais de 10 milhões de infectados em todo o planeta. A crueza abstracta dos números, incontornável e indispensável, arrasta também um efeito paralisante — dir-se-ia que a sobrevivência se transfigurou num trabalho para contrariar a contundência da estatística. Como baixar os números sem alienar a dimensão humana da coisa?

28 de junho de 2020

Política e medicina

Dois limites realmente drásticos parecem definir o quadro realista e simbólico em que estamos a viver a pandemia: de um lado, sobretudo com Donald Trump, parece não ser possível ir mais longe na consagração de uma irresponsabilidade que, antes de ser inevitavelmente política, é tragicamente humana; do outro, a instauração de um discurso global, globalmente vigilante, dir-se-ia panóptico, de alertas médicos leva a perguntar se a política não estará a ser co-optada e subsumida pela medicina. Resta saber se uma coisa e outra se alimentam e reforçam, nem que seja através de formas perversas de coabitação mediática.

Efeitos secundários

A naturalidade sem mácula, por vezes em forma de anódino e autoritário naturalismo, passou a ser uma espécie de efeito secundário dos discursos "especializados". Poderemos ser tentados a detectar em tal fenómeno as marcas de narcisismos invulgarmente delirantes, encontrando na exposição mediática, não uma forma de satisfação, mas a patética confirmação da sua identidade imaginária. Em todo o caso, tal fulanização corre o risco de passar ao lado da dimensão mais funda do fenómeno, isto é, do verdadeiro magma ideológico que sustenta a proliferação de "especialistas" — um pouco como a actual miséria fadista que faz com todos, dos mais talentosos aos mais medíocres, ao evocarem o nome "Amália", adquiram uma protecção automática para a consumação dos mais duvidosos projectos artísticos. O que acontece envolve uma contínua, determinista e emocionalmente muito agressiva organização "temática" de todos os domínios da vida social.
Um velho exemplo é esclarecedor: sempre que um filme português tem uma discreta performance comercial (e é quase empre), rapidamente se esquece o filme ("bom" ou "mau", não é isso que está em causa) para se discutir a magna questão do "cinema-português-que-não-tem-público". Uma qualquer super-produção com a marca de Hollywood pode ser um aparatoso desastre comercial, mas ninguém, nunca, lança qualquer discussão da mesma natureza.
Assim, se alguém se suicida, todos os circuitos de (des)informação fazem o elogio do morto para, logo a seguir, lançar os parâmetros compulsivos de uma discussão "alargada" sobre o suicídio. Com uma derivação local: porque é que os portugueses se suicidam?
O "tema" do suicídio é um triste espelho da nossa insensibilidade colectiva. Desde logo, porque já não sabemos aceitar o silêncio com que a memória do próprio suicida nos convoca. Depois, porque nem sequer conseguimos respeitar as trágicas singularidades de cada história pessoal — aquele suicida acaba por ser tratado de modo instrumental, transfigurando-se em pretexto "social" para nos entregarmos à discussão paternalista de todos os suicidas.

27 de junho de 2020

Bruno Lage

Felizmente, o país conseguiu libertar-se dos dramas e medos da pandemia. Mas por um preço cruel. Agora, vivemos acossados pela premência de um problema para o qual não estávamos preparados, mesmo multiplicando planos de assistência e profilaxia. Está em jogo a nossa sobrevivência como entidade histórica e projecto colectivo. A saber: o país sofre por não saber qual será o destino de Bruno Lage. O próprio parece gostar do protagonismo, mas também sofre, hélas!

26 de junho de 2020

Contágio

O seu amor era viral.
Foi acolhido com máscara.
Morreram do contágio.

Festas de contágio

As notícias, nacionais e internacionais, das festas de contágio, promovidas e protagonizadas por gente sem o mais débil resto de consciência social, são um sinal esclarecedor de uma nova regra. Não são, de facto, uma excepção, mas o triunfo de uma sinistra regra. Estranhamente ou não, é uma regra de trágica solidão. A saber: perante a fragilização de todos os modos de definição e afirmação individual no seio de algum colectivo — família, escola, religião —, os novos eremitas da doença tentam compensar o seu desespero com a estupidez delirante das suas festas. Celebram uma miserável utopia que consiste em sentir o bafo dos outros, beber álcool e dar pulos — tudo isso será ampliado pelas inevitáveis imagens televisivas, de outro modo festivas, também perversamente virais.
No limite, nenhum desses patéticos cidadãos em festa reconhece a inscrição da morte na sua trajectória de vida — é bem verdade que a negação da morte habita todas as narrativas de redenção romântica, mas aí a doença era outra.

23 de junho de 2020

Os novos bárbaros

Pandemia? Qual pandemia? A caminho dos 10 milhões de infectados? Who cares?
Reunem-se no meio das ruas, escutam DJs e exibem copos com bebidas — os novos bárbaros, educados pelo (e para o) social em rede não têm qualquer noção, perspectiva ou valor do que seja viver em sociedade. A sua arrogância leva-os a apresentarem-se como arautos de uma estupidez colectiva a que dão o nome de liberdade. Tristeza suprema: acreditam naquilo que dizem.

22 de junho de 2020

Connaît pas

Os ajuntamentos nas ruas de diversas cidades europeias são tristemente reveladores da quebra de um laço clássico: o dos cidadãos com o Estado. As celebrações de um individualismo libertário (bela palavra, agora abastardada) contaminado pelo vale-tudo do novo social — e das suas redes — são a expressão muito directa de um vazio existencial que já nem sequer possui qualquer réstea filosófica de niilismo. Apenas essa estupidez colectivizável segundo a qual o ruído desagradável, literal ou simbólico, que um qualquer possa produzir encontra sempre eco num qualquer colectivo de irresponsáveis.
Importa acrescentar algo de muito objectivo: a estreia de um grande filme (exemplo actual: Da 5 Bloods, de Spike Lee) terá sempre, mas sempre, um milhão de vezes menor cobertura mediática que duas ou três centenas de pessoas aos gritos, de copo na mão, a proclamar que o COVID-19... connaît pas.

20 de junho de 2020

Futebol & Estado

As imagens fotográficas e televisivas pontuaram toda a semana, numa espécie de parasitismo mediático que foi deslizando da surpresa para o choque, passando pela perplexidade: as três principais figuras do Estado português — Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e primeiro-ministro — acharam por bem protagonizar um evento de elaborada teatralidade para dar conta da realização em Lisboa da fase final da Liga dos Campeões. Como é possível que em tempos de tantos dramas tão difíceis de enfrentar, o aparelho estatal convoque toda a sua autoridade simbólica para se apresentar como arauto e garante de um evento futebolístico?
Claro que há argumentos de natureza económica e promocional que os políticos sempre aplicam para explicar este seu empenhamento. E convenhamos que, em boa verdade, não parece possível desmentir a justeza dos números eventualmente associados a tais argumentos. Aliás, corrigindo: qualquer discussão nessa base reforça o equívoco segundo o qual tudo se reduz a um misto de tecnocracia e marketing.
Acontece que aquilo que se discute e questiona não são números, mas formas de vida — formas de conceber e encenar a nossa existência de cidadãos portugueses. Ou ainda: porque é que o futebol passou a ser tratado, politicamente tratado, entenda-se, como o palco principal da nossa afirmação enquanto país, da nossa definição enquanto povo? Eis uma pergunta que valeria a pena integrar nos próximos debates dos actos eleitorais.

Filosoficamente

A piedade, afinal, não chega. Ao tom inicial que predominou no espaço mediático — a exaltação espectacular das vítimas da pandemia, por vezes "ampliada" por música — sucede o reconhecimento de um cruel desencanto: combater a doença não é uma derivação bíblica; é, de facto, travar uma inusitada guerra política. Daí o desencanto que passou a circular no social (não nas "redes", mas no sistema de relações que integramos), porventura aconchegando-nos um pouco mais no niilismo da moda: somos incapazes, egoístas e irresponsáveis. Eis a filosofia que seguimos, mesmo quando a queremos negar.

19 de junho de 2020

Living in a box

1. O jornalista que acompanha o jogo de futebol vê a bola ser passada para a direita e diz "a bola foi passada para a direita"... Depois, há um jogador que cai, empurrado por um adversário e ele diz "caiu empurrado por um adversário"... Ouve-se o árbitro a apitar para o final da primeira parte e o jornalista, confirmando que acredita que estamos fechados numa cave sem janelas e sem televisão por cabo, preocupa-se em esclarecer-nos que "ouve-se o apito do árbitro, é o final da primeira parte"...

2. A exposição mediática do COVID-19 passou a ser dominada pelo enquistamento de toda a complexidade do fenómeno numa contabilidade de números — quantos infectados, quantos internados, quantos mortos...

3. George Floyd morre infinitas vezes nas imagens televisivas; é uma espécie de loop trágico que se prolonga para lá de qualquer pertinência informativa.

O efeito de repetição que, hoje em dia, domina todos os espaços informativos, incluindo na rádio, impôs-se como uma forma de ver e, sobretudo, não ver o mundo à nossa volta. Dir-se-ia que aquilo que começou por ser um vício gerado pelas programações sem interrupção — é verdade: houve um tempo em que as televisões fechavam à noite — foi promovido a modelo de (des)conhecimento. A descoberta da notícia anula-se pela sua infinita repetição. Sentimos que a podíamos ter visto e ouvido antes, não precisamos de prestar atenção porque sabemos que a vamos poder ver ou ouvir mais tarde.
A célebre box caseira que todos passámos a possuir, ligada ao televisor, é a materialização disso mesmo. Ou, talvez, o advento de um mundo imaterial: já não há tempo nem duração, apenas um agora sem alma que pode ser sempre "rebobinado" e, por isso mesmo, esquecido em qualquer momento. 

17 de junho de 2020

Golos

Promovidos, todos os dias repromovidos e endeusados com oráculos dos nossos tristes dias, os treinadores de futebol passaram a ser socialmente tratados como uma categoria fenomenológica. De tal modo que a sua omnipresença mediática não se discute, escapa a todas as considerações lógicas ou argumentativas. Um deles explica o mau momento dos seus jogadores através de um conceito capaz de desafiar a mais tímida intenção de pensar. A saber: a sua equipa tem marcado menos golos que as outras... Que aconteceria se um político, um empresário ou um crítico de cinema dissesse um disparate do mesmo teor? Que guerras sociais seriam desencadeadas? Que réus seriam esventrados nos tribunais populares?

16 de junho de 2020

Dignidade & etc.

Eis o social que temos: quando uma equipa de futebol anda a jogar mal, acumula derrotas e desce na classificação... alguém chega para garantir que está tudo a acontecer com imensa dignidade. No pólo oposto, os vencedores, estranhamente, nunca são associados a tal valor — encarnam sempre matrizes de heroísmo mais ou menos nacional ou nacionalizável. Quer isto dizer que a performance profissional passou a existir entre duas utopias de miséria: perder é qualquer coisa que se redime numa espectacular afirmação moral (eventualmente despedindo o treinador, mas nunca ninguém fala da sua dignidade...); ganhar obriga a comunidade a reconhecer nos vencedores um modelo a aplicar em todos os recantos da sociedade.

👍👍👍

Espectadores e não-espectadores

Estranha percepção do cinema, do seu consumo e também da sua identidade. Por um lado, antes da pandemia, a sociedade estava alegremente dominada por uma visão festiva, porventura redentora, das plataformas de streaming. Nos últimos anos, nasceu mesmo um novo modelo de espectador (em boa verdade, trata-se de um não-espectador) que se distingue pela afirmação altiva de que "deixou de ir ao cinema" (o que, supostamente, o colocaria num patamar superior aos que mantêm tal "vício"); por outro lado, agora, a possibilidade de regresso às salas é maioritariamente noticiada — e, por certo, como tal encarada pelo público anónimo — como o retorno a uma pureza ideal, fundadora do próprio acto cinematográfico.
Em qualquer caso, tais contrastes são sintomáticos da metódica desvalorização da cinefilia: passamos o tempo a especular sobre os modos de acesso aos filmes, mas falamos muito pouco sobre eles e pensamo-los ainda menos.
Há dias, numa dessas plataformas, na zona de comentários a um clássico da história do cinema, alguém deixou a indicação de que se trata de uma "seca": a palavra usada é mesmo "secante" — sem mais, a gloriosa arrogância do nada. Quando a democracia acolhe, assim, a ignorância, as pessoas sentem-se felizes e realizadas — e não querem conhecer o que quer que seja.

PS — Além do mais, é incrível que uma entidade comercial — salvo melhor opinião, trata-se mesmo de vender filmes — acolha, assim, tamanha grosseria, nem sequer defendendo o seu produto da mediocridade "social" (convém sublinhar a transformação lexical: hoje em dia, a maior parte dos negociantes de cinema desconhece a palavra "filmes", só falam em "produtos").

14 de junho de 2020

Um conto moral

Como é que foi possível chegarmos a um ponto em que Donald Trump governa um país — e o mundo — através da televisão? Eis uma pergunta com que a televisão não se confronta. Pior um pouco: os políticos nem sequer conseguem conceber a possibilidade de a formular. Enfim, há pelo menos um político que sabe que a pergunta envolve uma lógica irredutível: o próprio Trump, claro.

13 de junho de 2020

Estátuas

Numa sociedade global em que a relação com o(s) outro(s) se pode confundir com a banal partilha de polegares ao alto, a destruição das estátuas é apenas um sintoma mais do triunfo de um niilismo sem programa. Não, a culpa não é do sr. Mark Zuckerberg, até porque o seu sistema de comunicação tem dado um contributo decisivo para diluir qualquer noção de responsabilidade social. Criámos, ou deixámos que ele criasse, um mundo em que tudo se esgota no flash do momento presente, sem que haja espaço para as irredutíveis singularidades da memória. Por que é que haveria espaço para as estátuas? A estupidez da sua destruição corresponde ao comportamento normal de uma comunidade que foi perdendo qualquer vínculo com a densidade e a complexidade da história.

12 de junho de 2020

A fala virtual

Difícil de descrever, e também de apropriar. Difícil distanciarmo-nos, de tal modo o seu uso se normalizou como matriz universal de "comunicação". É um tom de voz, uma velocidade, monótona mas precisa, de débito das palavras, um teatro de inquestionáveis certezas. Chamemos-lhe: falar virtual. Está por todo o lado: desde as mais disparatadas análises de filmes colocadas no YouTube até aos noticiários televisivos. Dir-se-ia que o enfraquecimento das ancestrais virtudes do diálogo — dois seres humanos, frente a frente — está a ser compensado pela pobre ilusão "científica" de uma fala que, apresentando-se histericamente condensada e liofilizada, nos dispensa de qualquer actividade ou risco de pensamento. Os médicos deviam integrar o fenómeno nas suas investigações sobre toxicodependência.

11 de junho de 2020

À escuta

O que é escutar, perguntou a criança.
Cala-te, respondeu o professor.
Ah, já compreendi.

Loop

Efeito perverso da pandemia: não havendo espectadores nas bancadas do futebol, há transmissões televisivas em que os minutos finais dos jogos são acompanhados (?) por uma miserável música electrónica, em loop. Em boa verdade, esta agressão sonora pertence a um mundo, com ou sem pandemia, que infantilizou — e, desesperadamente, tenta estupidificar — os espectadores. O conceito (?) obedece a um valor (?) comunicacional segundo o qual a atenção humana necessita de ruído para se sustentar. Na prática, seremos bons espectadores se nos entregarmos à confusão sonora, acabando por não prestar atenção a nada.

10 de junho de 2020

A ordem social

A ideia segundo a qual somos uma sociedade porque soubemos criar uma ordem (social, justamente) vai a par da noção de que todos, dos elementos policiais aos cidadãos comuns, passando pelos meios de comunicação, devem contribuir para a preservação dessa ordem. Curiosamente, semelhante aparato "filosófico" consagra uma lógica tecnocrática na percepção das nossas próprias vulnerabilidades enquanto colectivo: se a ordem apresenta impasses ou fissuras, isso quer dizer apenas que a fiscalização falhou. Mesmo que deus já não seja convocado, a ordem paira sobre nós como intocável transcendência. Por alguma razão, o video-árbitro triunfou, socialmente, como encarnação divina do "olhar" e oráculo da "verdade": ficamos felizes por poderemos dizer que aquele jogador estava fora de jogo porque a sua anca surgiu 3cm à frente do pé esquerdo do adversário... Quando podemos exibir uma medida, sentimo-nos realizados. E reintegrados na ordem.

9 de junho de 2020

Em análise

Qualquer tema da actualidade parece só adquirir pertinência, não exactamente através das singularidades das suas componentes, mas pelas análises que pode desencadear. Entenda-se: o acontecimento termina e, no instante seguinte, as rádios e as televisões entram em modo de análise. Reservar um tempo para pensar? É caso para dizer: nem pensar... O que mais conta é anular qualquer intervalo entre o "facto" e a sua análise, como se todos tivéssemos medo de habitar alguma duração que nos possa fazer sentir que compreender o mundo é uma tarefa árdua, exigente, formalmente nunca encerrada. Analisar passou a ser tão só manter o movimento. Movimento de quê? — eis a pergunta que quase todos deixaram de formular.

8 de junho de 2020

62.984.828

Com o agravamento da situação social nos EUA, proliferam as análises, os discursos e as paródias anti-Trump. Ainda bem. O misto de grosseria, demagogia e provocação que o 45º Presidente da grande nação americana "normalizou" na cena política gera uma inquietação que, sendo também política, envolve o futuro moral e cultural de todo um país.
O certo é que, para lá das muitas nuances de análises, discursos e paródias prevalece uma fixação mecanicista na definição do próprio objecto de tanta reflexão. Assim, conscientemente ou não, a maior parte das intervenções depende de uma interrogação unilateral: que fazer para contrariar o efeito-Trump? Ou seja: como derrotar Donald Trump nas próximas eleições?
Dir-se-ia que este é apenas um prolongamento discursivo do que, ao longo de 2016, aconteceu nos mais diversos contextos mediáticos (incluindo muitos dos mais sérios e exigentes). Nessa altura, quanto mais disparatada ou ofensiva fosse cada intervenção pública de Trump, mais e maior eco noticioso encontrava — como se os democratas acreditassem que a mera "informação" possui a virtude de desmontar e desmacarar os líderes populistas. Agora, o falhanço de tão ingénuo liberalismo ecoa na ânsia com que se relança ad infinitum uma espécie de oração profilática, certamente habitada por riquíssimas formas de pensamento, desejando que "algo" impeça a sua reeleição.
Não é apenas unilateral esta saga de muitos e comoventes desesperos. É também unívoca, consumando, afinal, a vontade primordial de Trump: apresentar-se e ser visto como protagonista de uma peça a cuja representação todos os outros actores faltaram — À Espera de Godot em monólogo, esquizofrénico e, por isso mesmo, triunfante.
Quase ninguém desce à terra da artitmética, lembrando a base de apoio de Trump. Voltar a lamentar o facto de, a 8 de Novembro de 2016, Hillary Clinton ter obtido quase mais 3 milhões de votos que o seu adversário não passa de um choro piedoso, porventura consolador.
A regra do jogo é clara: o Presidente é eleito pelos votos do colégio eleitoral, não pela soma dos votos individuais que recebe. Dito de outro modo: quase ninguém parece querer enfrentar a mais objectiva das realidades. A saber: 62.984.828 pessoas votaram em Trump. Enfrentar a tacanhez de pensamento de Donald Trump é relativamente fácil; lidar com o que pensam, desejam e imaginam mais de 62 milhões de americanos será um projecto político de radical dificuldade. Joe Biden é apenas um nome respeitável, um concorrente sério e uma calorosa personalidade — não é esse projecto.

Placebo

E se as mensagens audiovisuais fossem um placebo colectivo?

Natureza morta

Entrou na imagem para a ver melhor.
Inadvertidamente, quebrou a moldura de madeira.
Agora não sabe se está dentro ou fora.

7 de junho de 2020

Big Brother

A manutenção do Big Brother como programação "normal", antes e durante a pandemia, é tristemente reveladora da decomposição de valores que, hoje em dia, sustenta a nossa ilusão de comunidade. Viver obscenamente sob o olhar as câmaras, passar os dias a debitar banalidades sobre a existência humana, eis o que se apresenta — e, em boa verdade, se impõe — como padrão do cidadão liberto de complexos. Crise social? Neste caso, é algo de mais insidioso: crise de civilização, já que o factor humano surge transfigurado em "coisa" irrisória e descartável, sempre susceptível de despertar um desprezo espectacular. Entenda-se: promovido como espectáculo. Já ninguém se lembra de Serenata à Chuva.

6 de junho de 2020

"Ele arrasou"

O campeonato recomeça e os quatro da frente não conseguem melhor que dois empates e duas derrotas. Dir-se-ia que, jornalisticamente, valeria a pena referir que a velha clivagem entre equipas "grandes" e "pequenas" já não funciona do mesmo modo. E também que, em tempos das mais descabeladas considerações moralistas inspiradas pelo futebol, talvez fosse interessante sugerir que esses resultados mais ou menos imprevisíveis valorizam o próprio futebol, enriquecem a competição, intensificam o prazer do espectáculo. Mas não. O que ganha foro de grande acontecimento é o facto de um presidente de um dos clubes ter ido à cabina "arrasar" os jogadores... Eis um sintomático conceito de educação — no futebol e no jornalismo.

5 de junho de 2020

Axioma

Defender a beleza onde quer que ela se manifeste. Eis um axioma de consequências sempre trágicas. "Ele tinha experimentado de novo a sensação de que a beleza faz mal, sentido a profundidade de vergonha e desesperada nostalgia em que nos mergulha e como anula a coragem e a própria faculdade de viver a existência vulgar." Hanno Buddenbrook observava, assim, toda a sua existência como uma catástrofe programada antes mesmo do seu nascimento e consumada em metódica lentidão — foi depois de uma noite de Wagner, acompanhado pela mãe. Ou seja: "Não acreditamos na segunda-feira quando escutamos o Lohengrin no domingo à noite."

A ordem do futebol

Talvez que o poder de ocupação do quotidiano pelo futebol envolva a nostalgia pueril de alguma ordem. Assim, se é verdade que o mundo, com os seus conflitos e doenças, resiste à possibilidade de ordenação, não é menos verdade que a imagem social do futebol parece concebida para, ponto por ponto, contrariar essa ausência de alguma ordem capaz de apaziguar os nossos medos.
Sem dúvida por isso há toda uma ideologia mediática que repele qualquer noção de acaso ou arbitrariedade em cada jogo. Não há golos fortuitos porque há sempre "erros de marcação" — no limite, sem tais "erros", todos os jogos terminariam num esplendoroso "zero-a-zero". Os próprios resultados não podem decorrer de factores acidentais ou imponderáveis — há resultados "justos" e resultados "injustos", mesmo se ninguém nunca enunciou que lei se está a violar jogando mal e ganhando um jogo. Aliás, o infantilismo tosco dessa "justiça" resume o aparato ideológico instalado: na impossibilidade de estipular a lei, ao menos que se salve a ordem abstracta que se proclama.
Também por isso, a identificação do adepto com um clube tende a ser consagrada através da sua inscrição num colectivo de serena identidade esquizofrénica, de uma só vez social e transcendental. No limite, sempre com algo de redentor. Repare-se como até mesmo a expressão "o meu clube" não passa da embraiagem simbólica de uma festiva dissolução na gratificação que o colectivo garante, a ponto de o indivíduo, por mais anónima e irrelevante que seja a sua inscrição social, se apresentar como porta-voz desse colectivo: há mesmo quem não diga "o meu clube gastou 50 milhões a comprar o jogador A, B ou C", optando antes pelo apoteótico "nós comprámos..."
Talvez que a ordem imaginariamente garantida pelo futebol seja apenas, em derradeira instância, uma miragem de pacificação financeira. No interior dessa ordem, torna-se mesmo possível falar de milhões, assumindo um ilusório simulacro de controle, sem que isso seja contaminado pelas tragédias que a circulação do dinheiro instala no tecido social. Na prática, qualquer político que possa ser detentor de alguma riqueza acima da norma torna-se imediatamente suspeito, nem que seja de ambiguidade de carácter; entretanto, um jogador de futebol que arrecade 50, 60 ou 70 milhões por ano é um herói nacional.

4 de junho de 2020

G. G.

Beethoven *

Há toda uma geração de jovens jornalistas educados num esquematismo sem culpas. A saber: a actualidade faz-se das tricas do mundo político (com ou sem pandemia); segue-se o futebol, o futebol e o futebol (eventualmente com destaque prévio, indepedentemente do resto da actualidade); o cultural (?) é roupa velha, convém ser tratado como coisa mais ou menos pitoresca, por exemplo lembrando aos incautos cidadãos que, tirando partido de uma qualquer estupidez digital, talvez possam escutar um fragmento breve de Beethoven, online, talvez nem sequer se aborreçam, coitados... Entretanto, proliferam os estudos, análises e outras hipocrisias sobre a reconversão económica, tecnológica e conceptual do espaço mediático.

* Beethoven é opcional. Em caso de gravosa seriedade, talvez se possa recomendar Schoenberg.

3 de junho de 2020

Futebol

Não é preciso haver espectadores sentados nas bancadas: os ruídos do futebol voltaram a ocupar o nosso quotidiano. Podemos, claro, desligar tudo, televisão, rádio, telemóveis e Internet. E morrer para os outros. Talvez ninguém desse por isso.

2 de junho de 2020

Oportunidade futebolística

Adoptemos a linguagem dominante. E perguntemos, por exemplo, onde poderá estar uma dessas "oportunidades" que, supostamente, a pandemia criou.
Arrisquemos uma hipótese: talvez fosse interessante tratar o futebol apenas como jogo, em vez de o promover à condição de filtro filosófico de todas as nossas formas de existência. Talvez os respectivos protagonistas, desportivos e mediáticos, pudessem delinear um plano de austeridade discursiva, poupando-se (e poupando-nos) à monótona banalidade de tropos como:
— "trabalhámos muito"
— "sofremos muito"
— "estão a jogar mais com o coração do que com a cabeça"
— "o golo foi contra a corrente do jogo"
— "o mister é que sabe"
— etc., etc., etc.
Talvez. Mas não é isso que está a acontecer. O COVID-19, a paragem física, as receitas que não se tiveram, as transferências que se fizeram, as transferências que não se fizeram, as transferências que talvez se possam fazer, o efeito psicológico da ausência de público nos estádios... Ah! A epistemologia futebolística está a superar as suas próprias fronteiras, inventando uma nova paisagem discursiva.
A oportunidade de pensar a vida colectiva para lá do futebol nunca existiu.

Das aglomerações

Interessante notícia: um presidente de Câmara determinou a suspensão da venda de bebidas alcoólicas entre as 20h00 e as 08h00 nos postos de combustível do município. Motivo exposto: evitar aglomerados de pessoas. Não se discute a boa vontade da norma, mas vale a pena assinalar que deparamos, assim, com uma curiosa reconversão simbólica: por causa da pandemia, a defesa da saúde colectiva transforma a dependência alcoólica numa questão de horários, ou melhor, na eficaz prevenção de aglomerações indesejáveis. Eis o "social" em que vivemos: a gestão dos dramas mais fundos faz-se através da proliferação de normas — estamos seguros, eis a mensagem. Provavelmente estamos, mesmo que isso reforce o desconhecimento daquilo que somos.

"Oportunidade"

Novo vírus de linguagem, este ainda mais activo e destruidor da alegria, da luminosidade e dos enigmas que a linguagem pode conter. Já não se trata de disparates como a morte lenta da subtil expressão "à última hora", destruída pelo horrível "à última da hora". Agora, dos políticos aos investidores, passando pelo cidadão comum (?) à frente de quem foi colocado um microfone, quase todos aprenderam a proclamar que a situação de pandemia é uma "oportunidade". Há "oportunidades" em todos os recantos da economia, da cultura, da vida pública e privada — como se o combate contra a doença e a defesa da vida fosse uma construção de lego... Colocamos uma nova peça e o mundo encontra a sua redenção, anulando o apocalipse. Há qualquer coisa de entediante em todo este voluntarismo. E também de desmobilizador.

1 de junho de 2020

Facebook

Empregados do Facebook mostram insatisfação pelo modo como Mark Zuckerberg (não) tem lidado com os posts mais agressivos [a palavra, em artigo do NYT, é "inflamatory"] de Donald Trump. Eis uma crua e reveladora ironia destes nossos tempos globais: afinal, a transparência redentora da comunhão "social" em rede não é transparente, nem consagra qualquer ideal comunitário.
Agora, a crise é mesmo social. Agora, trata-se de saber o que define a liberdade de estabelecermos uma relação com o outro.
Faces. And books.

Saudades

A doença trouxe-lhe uma nova consciência.
Decidiu, por isso, doar a velha consciência a uma instituição de caridade.
Mas já está com saudades.