28 de junho de 2020

Efeitos secundários

A naturalidade sem mácula, por vezes em forma de anódino e autoritário naturalismo, passou a ser uma espécie de efeito secundário dos discursos "especializados". Poderemos ser tentados a detectar em tal fenómeno as marcas de narcisismos invulgarmente delirantes, encontrando na exposição mediática, não uma forma de satisfação, mas a patética confirmação da sua identidade imaginária. Em todo o caso, tal fulanização corre o risco de passar ao lado da dimensão mais funda do fenómeno, isto é, do verdadeiro magma ideológico que sustenta a proliferação de "especialistas" — um pouco como a actual miséria fadista que faz com todos, dos mais talentosos aos mais medíocres, ao evocarem o nome "Amália", adquiram uma protecção automática para a consumação dos mais duvidosos projectos artísticos. O que acontece envolve uma contínua, determinista e emocionalmente muito agressiva organização "temática" de todos os domínios da vida social.
Um velho exemplo é esclarecedor: sempre que um filme português tem uma discreta performance comercial (e é quase empre), rapidamente se esquece o filme ("bom" ou "mau", não é isso que está em causa) para se discutir a magna questão do "cinema-português-que-não-tem-público". Uma qualquer super-produção com a marca de Hollywood pode ser um aparatoso desastre comercial, mas ninguém, nunca, lança qualquer discussão da mesma natureza.
Assim, se alguém se suicida, todos os circuitos de (des)informação fazem o elogio do morto para, logo a seguir, lançar os parâmetros compulsivos de uma discussão "alargada" sobre o suicídio. Com uma derivação local: porque é que os portugueses se suicidam?
O "tema" do suicídio é um triste espelho da nossa insensibilidade colectiva. Desde logo, porque já não sabemos aceitar o silêncio com que a memória do próprio suicida nos convoca. Depois, porque nem sequer conseguimos respeitar as trágicas singularidades de cada história pessoal — aquele suicida acaba por ser tratado de modo instrumental, transfigurando-se em pretexto "social" para nos entregarmos à discussão paternalista de todos os suicidas.