5 de junho de 2020

A ordem do futebol

Talvez que o poder de ocupação do quotidiano pelo futebol envolva a nostalgia pueril de alguma ordem. Assim, se é verdade que o mundo, com os seus conflitos e doenças, resiste à possibilidade de ordenação, não é menos verdade que a imagem social do futebol parece concebida para, ponto por ponto, contrariar essa ausência de alguma ordem capaz de apaziguar os nossos medos.
Sem dúvida por isso há toda uma ideologia mediática que repele qualquer noção de acaso ou arbitrariedade em cada jogo. Não há golos fortuitos porque há sempre "erros de marcação" — no limite, sem tais "erros", todos os jogos terminariam num esplendoroso "zero-a-zero". Os próprios resultados não podem decorrer de factores acidentais ou imponderáveis — há resultados "justos" e resultados "injustos", mesmo se ninguém nunca enunciou que lei se está a violar jogando mal e ganhando um jogo. Aliás, o infantilismo tosco dessa "justiça" resume o aparato ideológico instalado: na impossibilidade de estipular a lei, ao menos que se salve a ordem abstracta que se proclama.
Também por isso, a identificação do adepto com um clube tende a ser consagrada através da sua inscrição num colectivo de serena identidade esquizofrénica, de uma só vez social e transcendental. No limite, sempre com algo de redentor. Repare-se como até mesmo a expressão "o meu clube" não passa da embraiagem simbólica de uma festiva dissolução na gratificação que o colectivo garante, a ponto de o indivíduo, por mais anónima e irrelevante que seja a sua inscrição social, se apresentar como porta-voz desse colectivo: há mesmo quem não diga "o meu clube gastou 50 milhões a comprar o jogador A, B ou C", optando antes pelo apoteótico "nós comprámos..."
Talvez que a ordem imaginariamente garantida pelo futebol seja apenas, em derradeira instância, uma miragem de pacificação financeira. No interior dessa ordem, torna-se mesmo possível falar de milhões, assumindo um ilusório simulacro de controle, sem que isso seja contaminado pelas tragédias que a circulação do dinheiro instala no tecido social. Na prática, qualquer político que possa ser detentor de alguma riqueza acima da norma torna-se imediatamente suspeito, nem que seja de ambiguidade de carácter; entretanto, um jogador de futebol que arrecade 50, 60 ou 70 milhões por ano é um herói nacional.