27 de julho de 2020

Murnau

Oportunidade?
Oportunidade para repensar todas as componentes da nossa existência? Sim, porque não? Começando, por exemplo, por uma exigência de pensamento: pensem que, quando Murnau filmou City Girl, nenhum de vocês tinha nascido. E continuem a pensar.

26 de julho de 2020

Instagram

Provavelmente, daqui a alguns anos, porventura décadas, os historiadores encontrarão nas nossas contas do Instagram alguns dos sinais mais reveladores do modo como, socialmente, encarámos a pandemia — em particular do modo como (não) sabíamos olhar o outro. Os outros.

24 de julho de 2020

Exercício

Tocar o horizonte com a ponta do dedos.
Fechar os olhos e tactear as primeiras nuvens.
Recuperar a frase e os limões que caíram.

23 de julho de 2020

Tautologia

"Numa palavra, Racine é sempre outra coisa que não Racine, e eis o que torna a tautologia raciniana bem ilusória. Compreende-se, pelo menos, o que é que uma tal nulidade na definição traz aos que a agitam gloriosamente: uma espécie de pequena salvação ética, a satisfação de ter militado em favor de uma verdade de Racine, sem ter de assumir nenhum dos riscos que toda a investigação um pouco positiva da verdade fatalmente comporta: a tautologia dispensa de ter ideias, mas, ao mesmo tempo, incha-se ao fazer desta licença uma dura lei moral; daí o seu sucesso: a preguiça é promovida à categoria de rigor. Racine é Racine: admirável segurança do nada."

ROLAND BARTHES
[Tradução de José Augusto Seabra / Edições 70, 1973]

22 de julho de 2020

Análises & projectos

No caso do futebol (e o exemplo do regressado Jorge Jesus é esclarecedor), o dinheiro não é mediaticamente tratado como noutros domínios. Há mesmo um paraíso futebolístico que existe como cenário liberto das tragédias morais & financeiras que assolam as outras actividades humanas. Todos os outros dinheiros são escalpelizados de forma delirante, alimentando a noção de que cada uma dessas actividades se define por um limiar de euros a partir do qual tudo é suspeito — no futebol, as análises limitam-se a especular sobre o peso do dinheiro investido na prossecução de determinados projectos.
Um filme que custe um milhão de euros, eis um investimento que importa discutir... No futebol, quanto mais os milhões crescem, mais se analisam os projectos — até à exaustão de já não se estar a falar de coisa nenhuma.

21 de julho de 2020

Do país

CITAÇÃO: Após o aparato na chegada a Portugal, no aeródromo de Tires, Jorge Jesus rumou a sua casa, na margem sul, onde acedeu falar brevemente aos jornalistas presentes. «Sinto-me bem por voltar ao meu País», disse, apelando ao respeito pela sua privacidade. [A Bola]

Seria possível escrever um enorme dossier sobre estas linhas. Dava para encher várias edições de um só jornal — como esse dossier não se faz, são estas as linhas que se publicam. Ou a cultura mediática como poupança de ideias.

Ninguém

Um, dois, três quatro, cinco, seis... Ou o espectáculo em tempos de pandemia. A saber: vários canais de televisão transmitem em directo a chegada do avião particular em que Jorge Jesus regressa a Lisboa. Eis a lhaneza de uma pergunta possível: porquê esta opção? Não é exactamente uma pergunta sobre critérios de programação. Nem se confunde com uma eventual especulação sobre os investimentos e desinvestimentos de dinheiro com que se faz a televisão em Portugal. É uma pergunta humanista, sobre valores de linguagem e comunicação. Dito de outro modo, é aquilo que ninguém quer enfrentar: uma pergunta cultural.

Sessões de cinema

Há qualquer coisa de surreal nas actuais sessões de cinema. Como se a reconquista do estatuto de espectador envolvesse o mascaramento daquilo que nos confere uma identidade — e uma imagem —, apenas sobrando o assustado fulgor dos olhos. De alguma maneira, os que arriscam estar presentes numa dessas sessões não podem deixar de reconhecer o valor de uma sociabilidade antiga, tão tristemente desvalorizada pela conjugação de dois factores mercantis: a vida em rede ("social") e a promoção dos grandes ajuntamentos colectivos em que o acto de comunicar se confunde com a produção colectiva de ruído (literal e simbólico). Além do mais, redescobrindo o valor de um ecrã que não se desloca, que não se desliga, recebe luz e devolve-a.

17 de julho de 2020

Projectos (cont.)

Bizarra confluência de regressos: no mesmo dia, fica-se a saber que Jorge Jesus e Cristina Ferreira regressam (ao clube de futebol e ao canal televisivo a que já pertenceram). A palavra mágica regressa também: ambos vêm em nome de novos projectos, claro.
Assim funciona o débil imaginário profissional que reconfigurou toda a nossa sociedade. E de que, bem entendido, as personalidades citadas, como outras da mesma galeria de "famosos", são apenas peões sintomáticos, porventura incautos desconhecedores da sua própria vulnerabilidade simbólica. Não está em causa, entenda-se, o mais pequeno grão de legitimidade: é bom saber que vivemos numa democracia que, com maiores ou menores desequilíbrios internos, cria condições para que este tipo de movimentações possa acontecer. Mas não é fácil esquecer que, quase sempre, todos estes sobressaltos acontecem também "por amor à camisola", visando uma relação de trabalho vocacionada para uma gloriosa "eternidade"... São camisolas a mais. E eternidades muito mal cronometradas.

Projectos

Afinal, parece que Jorge Jesus não vem ganhar 7 milhões de euros... Há quem diga 3, há quem dia 4... Em boa verdade, esta arbitrariedade é irrelevante, já que mascara o essencial. A saber: a pandemia deixou de ser notícia. Vem um homem do Brasil para Portugal e, no plano mediático, as considerações filosóficas sobre a sua identidade e o seu destino sobrepõem-se a todas as atribulações que possam estar a afectar o planeta. Ah, ponto importante: como em qualquer retórica político-económica, ficamos a saber que a sua vocação transcendental o define como próximo protagonista de um projecto. O mundo passou mesmo a dividir-se entre a aristocracia dos projectos e a plebe dos que não têm qualquer ideia para projectar — seja como for, seguramente, os segundos andam a ser muito mal pagos.

16 de julho de 2020

Sangue

Com pandemia, sem pandemia, descobrimos os adeptos/comentadores do futebol empenhados na mesma guerra de palavras, tão radical e fracturante que não exclui — antes exacerba — a afirmação do sangue como verdade primordial do seu clubismo. Queremos revoltar-nos contra o seu pueril maniqueísmo, mas a tristeza prevalece. Acolhemo-los piedosamente.

Do futebol como norma social

Será o futebol a única religião que nos resta? Que aconteceu para que a mobilização social — com todas as suas ramificações mediáticas — se confunda cada vez mais com as alegrias e tristezas dos adeptos oficiais do futebol?
A simples formulação de tais perguntas coloca-nos numa posição associal. Entenda-se: exterior aos valores sociais dominantes — porque há valores dominantes e valores dominados.

15 de julho de 2020

Fealdade

Compelidos a olhar (ainda) mais vezes para os ecrãs de televisão, há cenários, guarda-roupa, poses e discursos que nos levam a perguntar: porquê tanta fealdade?
No limite, podemos até supor que há muitas emissões para as quais, no interior da própria máquina televisiva, ninguém olha, ninguém sabe, ninguém quer saber. Há mesmo esse exemplo (regular) dos jogos de futebol em que os jogadores usam equipamentos muito semelhantes, dificultando a identificação de uma e outra equipa... O exemplo envolve uma reveladora sintomatologia: os jogos são vistos por audiências gigantescas (por vezes, centenas de milhões de espectadores), movimentam numerosas e complexas estruturas (dos clubes às equipas técnicas de transmissão, passando pelos poderosos estrategas de marketing) e não há uma pessoa — bastaria uma pessoa — capaz de colocar a mais básica questão de comunicação: será que, nos seus ecrãs, os espectadores vão conseguir distinguir os jogadores das duas equipas?

14 de julho de 2020

Nada

Do nada, surgiu uma ideia, uma ideia capaz de enfrentar o nada. Percorreu a ideia, deparando com o nada. Concluiu: não há nada como pensar.

A linguagem dominante

Sempre que acontece um golo bizarro num jogo de futebol (e é quase sempre), surge uma alma inquieta para nos alertar que tudo aquilo aconteceu "contra a corrente do jogo", rejeitando o valor do acaso e o sabor da imprevisibilidade que, por definição, caracterizam qualquer jogo. Por estes dias, especialistas de todos os quadrantes (a ponto de, perante a proliferação de actividades especializadas, o ser humano comum não passar de um incidente incómodo) garantem-nos que a pandemia é uma "oportunidade". De quê? Para quê? São assim os oráculos da nossa miséria filosófica — da caricatura patética passaram à condição de linguagem dominante.

13 de julho de 2020

Cientificamente

Definitivamente, há uma dimensão da política que se transferiu para o discurso científico. A reconfiguração do imaginário social que assim se consagra é tanto mais desconcertante, porventura assustadora, quanto não conseguimos decifrar, objectivamente, o que está a acontecer — isto partindo do princípio que o aparato discursivo da ciência visa algum tipo de objectividade.
Não é tanto a política e, em particular, a gestão da urgência motivada pela saúde colectiva que passaram para o controle da classe científica; é essa classe que parece existir, apresentar-se ou ser representada como uma entidade enraizada num espaço/tempo apolítico e, no limite, associal — os seus elementos seriam representantes de uma nova legitimidade face à colectividade.
Que legitimidade? A de quem, em nome da ciência, trabalha para o bem colectivo — trabalho essencial, entenda-se. Acontece que, ao mesmo tempo, deste modo, explicitamente ou não, o bem colectivo deixa de ser resultado do movimento multifacetado dos indivíduos e grupos, das diferenças cognitivas e respectivas tensões culturais, para passar a ser conceptualizado como algo que pode ser cientificamente fundamentado e, mais do que isso, aplicado. Na prática, estão em jogo os pressupostos de uma nova religião, talvez de um totalitarismo emocional, que nos leva a encarar o corpo, não como uma entidade viva, antes um avatar assombrado pela hipótese universal e omnipresente da doença — diz-me de que doença padeces, di-te-ei quem és.

12 de julho de 2020

Sonho / verdade

Talvez que o sonho seja apenas a verdade descarnada, liberta da ganga daquilo a que damos o nome de real. Talvez que o real possa ser mais consistente, ou menos impossível, se pensarmos que a sua ordem, a existir, será sempre onírica. Pensar isto coloca-nos fora da comunicação televisiva.

"Futebol é cultura"

Eis um grande lema político: "Futebol é cultura".
Não para legitimar a mediocridade de comportamentos e a boçalidade de pensamentos que muitas formas sociais de viver (e promover) o futebol impuseram na nossa sociedade. Antes para perguntar como e porquê nos movemos num espaço cultural — entenda-se: um sistema de valores colectivos — todos os dias dominado e asfixiado pela omnipresença do futebol em todos os recantos da vida social.
Onde está um partido político com a serenidade de abrir essa reflexão? Resposta: não está, não há, não vai haver.

Vozes

Nada a fazer: por mais que o voluntarismo endémico da "comunicação" resista a tal reconhecimento, cada voz transporta uma ideia dupla — sobre o que diz e faz, sobre o que serão os seus receptores. Assim, no mapa mediático das vozes encontramos esse fenómeno, cada vez mais generalizado, que se sente na televisão, mas talvez ainda mais na rádio. Chamemos-lhe hierarquização autoritária das consciências. Assim, há vozes que confundem a noção de serviço (público, como se costuma dizer) com uma grosseira infantilização do destinatário. Será que os produtores de tais sonoridades julgam que já não há adultos na sala?

Regresso ao paraíso

Diz o comentador, em pose involuntariamente nonchalant: caso o anjo da guarda regresse, a equipa terá de readaptar-se à filosofia de Jorge Jesus... Isto depois de, en passant, se ter referido que há pontos a esclarecer, incluindo esse detalhe de somenos que será o salário anual de 7 milhões de euros.
Assim vai o nosso paraíso futebolístico: qualquer tostão que se gaste em produzir filmes suscita sempre as cruzadas moralizantes dos que, ofendidos, denunciam a utilização torpe do dinheiro dos contribuintes. Que um treinador de futebol ganhe num dia o equivalente a 30 salários mínimos mensais pagos na gloriosa República Portuguesa, eis o que é vivido, propalado e eticamente legitimado como um curioso detalhe aritmético...
Claro que a questão não é apenas essa, mesmo se qualquer opção de política cultural se define, antes do mais, como opção financeira. Mas, nem que seja pelo gosto abstracto da matemática, fiquemo-nos por aí, isto é, pelos números.
Valeria a pena perguntar: quem paga as quotas dos sócios e os lugares dos estádios — lugares que podem custar 40 ou 50 vezes mais que um bilhete de cinema?
E já agora: quem paga as assinaturas dos canais que trasmitem jogos de futebol?
E ainda, porque não: quem consome os produtos que os clubes promovem nos estádios e nas camisolas dos jogadores?
Perante tão cândidas perguntas, será que alguém vai reabrir o debate e perguntar como é que o salário de Jorge Jesus — em boa verdade, da maior parte dos treinadores de futebol — provém ou não provém dos bolsos dos "contribuintes"?

11 de julho de 2020

Sonhar não é fácil

Os sonhos transformaram-se. Correspondendo às tensões deste tempo de enquistamento, de algum modo ilustrando-as, expondo-as enquanto imagens efémeras, mas de assustadora intensidade, os sonhos já não são um teatro de equívocos ou, de acordo com as lições do avô Freud, a realização mais ou menos mascarada de um desejo. Ele gostaria, por certo, de conhecer o novo onirismo. Dir-se-ia que o desejo acedeu ao seu fantasma mais radical, ou melhor, à sua identidade fantasmática. A saber: a representação literal do seu impossível objecto. Sonhar tornou-se, assim, a aventura angustiante de conhecer e reconhecer a insensatez social do próprio desejo, a ponto de o desejo de acordar contaminar as peripécias do próprio sonho com uma asfixiante sensação de urgência. Mais do que isso: experimentando, por instantes, o medo como algo de que não se regressa.

10 de julho de 2020

Online

As novas famílias: sentados no sofá, pais e filhos contemplam e actualizam as suas presenças online; por vezes, enviam mensagens uns para os outros. As ligações são globais, as solidões regionais — não há mapas que permitam ver uma coisa ou outra.

8 de julho de 2020

Da indiferença

A indiferença de muitos cidadãos — jovens, sem dúvida, mas em boa verdade das mais diversas faixas etárias — face às regras de protecção contra o COVID-19 recoloca no seio do tecido social um impasse filosófico a dois tempos. Primeiro: será que há neles o niilismo de quem encara a tragédia como inelutável, superior a qualquer gesto individual ou dispositivo colectivo? Segundo: serão alheios a qualquer pensamento sobre a vulnerabilidade da vida humana, a sua e a dos outros? Seja qual for a resposta, é difícil não pensar que o respectivo enunciado integra germes de algum tipo de totalitarismo.

OMS / Coca-Cola

Uma voz diz, algures, num programa de rádio: "O orçamento anual da Organização Mundial de Saúde é mais pequeno que o orçamento anual de marketing da Coca-Cola." Quantas vezes ouviremos estas palavras na paisagem mediática? Mais ou menos vezes do que a amostragem do lance de penalty que ficou por marcar no último jogo do *****?
E se começássemos a formular tais perguntas, que mudaria no mundo à nossa volta?

7 de julho de 2020

Estúpidos

Jovens etilizados, amontoados nas ruas de Albufeira, sem máscaras nem qualquer tipo de distanciamento, dão conta da sua alegre obscenidade perante as sempre disponíveis câmaras de televisão: "... somos jovens, estamos apenas a divertir-nos." Como é que os adultos permitiram a normalização de tanta estupidez? É tempo de perguntar: de que falamos quando falamos de juventude?

6 de julho de 2020

Rosto

Retiro a máscara de luz.
Ofereço-te a escuridão do rosto.
Aceita o silêncio.

Lei e ordem

Porque é que se fala tanto de futebol em televisão? Na verdade, a pergunta não será tão pertinente quanto a saturação futebolística pode fazer supor. Vale a pena abreviá-la: porque é que se fala tanto em televisão?
Espectadores e actores deste estado de coisas, somos todos cúmplices. Ou ainda: que aconteceu, que lei mediática, que ordem discursiva se impuseram a todos nós, a ponto de a avalanche de palavras se ter transformado num tecido de infinitas redundâncias que, no limite, favorece uma violenta surdez cognitiva?
O fenómeno está longe de ser meramente televisivo. Ou mesmo especificamente radiofónico. Há nele uma dimensão social tanto mais desgastante quanto a proliferação de "vozes", até à confusão total, é um dos princípios de funcionamento das chamadas redes sociais. De acordo com a sua lógica, a sociabilidade não passa mesmo do privilégio pueril de podermos "existir" num qualquer circuito de links, likes e outros modos de reduzir o mundo a uma selva de algoritmos. Descobrir que o pensamento matemático (enfim, algumas formas desse pensamento) se transformou numa visceral força política, eis um reconhecimento assustador.

5 de julho de 2020

Etilismo

"É claríssimo que quem vai a um bar e bebe demais não vai respeitar a distância de mais de um metro recomendada." Na sua objectividade, as palavras de John Apter, presidente da Federação de Polícia britânica, têm qualquer coisa de involuntariamente caricatural: reflectem a incapacidade de lidar com a cultura do álcool, tão universal quanto pueril, todos os dias legitimada pelo niilismo libertário deste século. Ou ainda: na imensa paisagem social que se desenha entre o radicalismo anti-tabagista e o liberalismo etílico, deixou de haver pensamento político.

Lactose

A situação de confinamento aumentou o consumo de filmes online, hélas! O que não quer dizer que haja qualquer tipo de incremento na afirmação de valores cinéfilos. Entenda-se: no sentido de compreender e valorizar os filmes como objectos específicos, ligados a uma história, um património, uma mitologia e uma simbologia. Nada disso: as plataformas de streaming organizam as suas listas de novidades como um catálogo de supermercado. Há, por certo, coisas magníficas no meio daquela confusão de adjectivos e patéticas descrições, mas ninguém se preocupa com a nossa dieta. O cinema passou a ser tratado com o cuidado cénico dos armários frios onde estão expostos os iogurtes — nesse caso, pelo menos, podemos distinguir os que têm dos que não têm lactose.

Paraíso, inferno

A presença diária de Graça Freitas e Marta Temido nos nossos ecrãs decorre de uma admirável dedicação humana. Infelizmente, quanto mais os dias se prolongam, mais as suas imagens ficam expostas ao desgaste cruel gerado pelo nosso mundo mediático. E não vale a pena esperar que os repórteres irresponsáveis ponham fim às perguntas desonestas e provocatórias — a pandemia é o seu paraíso, o nosso inferno.

4 de julho de 2020

Suleiman

Alguma indiferença jornalística face à estreia do filme de Elia Suleiman, O Paraíso, Provavelmente, parece decorrer do incómodo associado às suas narrativas. E não necessariamente porque o jornalista se sinta compelido a ceder ao maniqueísmo cognitivo do "pró ou contra". Para lá das tragédias e do sangue que, há décadas, pontuam a coexistência Israel/Palestina, Suleiman enuncia uma verdade muito básica com a qual não é fácil lidar, sendo ele, obviamente, o primeiro a confrontar-se com a sua densidade material e também a perturbação simbólica que acarreta. A saber: como existir — e, sobretudo, como filmar — quando se pertence a um povo e não se tem um país? Perversa convulsão da história: como se o ancestral assombramento judaico se tivesse transferido para a existência contemporânea da Palestina.
Para a aceleração jornalística que faz lei, arrastando mesmo os que tentam resistir-lhe, Suleiman (o seu trabalho, entenda-se) repele qualquer classificação de fronteira, derivada ou não da linguagem da pandemia: não é possível aquietá-lo num rótulo mediático, não sabemos se está infectado ou não. Há nele qualquer coisa da neutralidade ambígua de um assintomático — e isso a preguiça jornalística não tolera.

3 de julho de 2020

Pós-quarentena

Novas imagens do futuro. Aliás, do presente em demanda do futuro. Ou do presente, do imperioso presente, que resistimos a identificar como futuro perversamente actualizado. A saber: o New York Times publica imagens de ruas em movimento, até certo ponto idênticas às das chamadas câmaras de vigilância, mas transfiguradas em mapas de temperatura, e com uma informação surreal: "Num mundo pós-quarentena, as imagens de infra-vermelhos poderão tornar-se uma parte da nossa vida quotidiana. Uma grande parte." E se é verdade que o visual nos pode remeter para o imaginário de alguma ficção científica, não é menos verdade que as cores densas, estranhamente sensuais, geradas pelas câmaras pertencem a um novo realismo: deixamos de ser figurantes de uma paisagem social, passando a existir como manchas térmicas. Os corpos, os seus fluidos e todos os sobressaltos da pulsão romântica passam a existir sob o signo de uma incurável suspeita.

2 de julho de 2020

Obituários

A escrita de obituários é uma profissão cruel. E pedagógica. Quem escreve é levado a compreender que, ao dar a conhecer o perfil de alguém, em boa verdade não conhece ninguém. Entretanto, o objecto da sua demanda morreu.

Métrica

O meu amor por ti é maior que a Lua.
Já não entraram no carro.
Era mais seguro ir a pé.

1 de julho de 2020

As novas interpretações dos sonhos

Dir-se-ia que o futebol é a única via de acesso que temos para falar e, de algum modo, valorizar palavras como:
— sofrimento
— justiça
— coração & cabeça.
Com essa particularidade pueril que faz com que, mais de 100 anos depois de Freud ter produzido os seus primeiros escritos (mesmo a primeira edição de A Interpretação dos Sonhos é de 1900), continua a haver um imenso território mediático — e, nessa medida, público — que consagra a existência humana como algo que pode ser descrito atravé de uma oposição maniqueísta entre "sentir" e "pensar". Mais ainda: garantindo que "pensar-com-a-cabeça" nos coloca (em todo o caso, coloca os jogadores de futebol) do lado de uma imaculada razão, enquanto "sentir-com-o-coração" nos empurra para o erro (pelo menos, quando se joga futebol). Eis a nova educação das massas, mais intelectual nas suas matrizes de exposição e comunicação do que todas as diatribes com que, por tradição, se acusam os intelectuais.

NOTA — A par do surto de COVID-19, há cada vez mais comentadores de jogos de futebol que ignoram o sentido da palavra veleidade, usando-a como se fosse sinónimo de hipótese ou cedência: "A defesa não dá veleidades aos atacantes..."; o que justifica uma dedução a dois tempos: quem emite já não ouve o que é emitido, ou também não conhece a palavra.