31 de agosto de 2020

Trabalho

Há uma guerra social travada por causa e, de alguma maneira, através do COVID-19. No seu cerne está o impensado do trabalho. Dito de outro modo: abaladas todas as estruturas de trabalho, não há programa social para sustentar de modo tão harmonioso quanto possível a circulação dos valores. Daí a silenciosa ressurreição de um fantasma: cada ser humano deixou de valer pelo trabalho que executa ou pode executar, reduzindo-se ao valor que pode gerar para a "colectividade". Subitamente, Marx renasce numa perturbante actualidade simbólica. Perturbante e, em alguns aspectos, irrisória, já que aqueles que seriam os seus directos herdeiros (coisa discutível, entenda-se) nada têm a dizer sobre o  actual labirinto social do trabalho, investindo numa patética militância. A saber: dirimir com a Direcção Geral de Saúde os números possíveis de visitantes no recinto da Festa do Avante.

30 de agosto de 2020

Avante

A inabilidade política das entidades governamentais em lidar com a Festa do Avante é um reflexo exemplar da dramática dimensão social da pandemia. Num sentido muito preciso: se é possível definir, politicamente, regras socialmente coerentes e consensuais, porquê hesitar quando se está a lidar com um partido político?
Verificamos, assim, que em determinados momentos o Partido Comunista continua a ser tratado como uma vaca sagrada da nossa cultura democrática, como se qualquer medida que afecte a sua lógica ou as suas actividades fosse uma ferida aberta na "democracia", ou até mesmo um insulto ao "povo".
Escusado será dizer que tal tratamento só oferece pretextos a que as forças mais extremistas reforcem as suas argumentações demagógicas, arrogando-se o direito de falar em nome do dito "povo". Seria assim tão complicado ser coerente e, já agora, aplicar a religião do futebol para declarar o óbvio que é também, neste caso, em nome da saúde pública, o mais sensato? A saber: se não há pessoas nos estádios de futebol, também não há Festa do Avante.
Podemos até acreditar que haveria algum militante comunista que, em nome dessa sensatez, viesse publicamente reconhecer a justeza da decisão — em nome do povo, neste caso sem aspas.

29 de agosto de 2020

Instagram & Cª

Depois das trocas íntimas do Facebook, do seu pueril ecumenismo, a proliferação global das contas do Instagram expôs-nos como protagonistas de um novo narcisismo, tanto mais obsceno quanto a sua lei primordial inverte qualquer tradição: já não se trata de defender a minha singularidade, distanciando-me do outro, porventura até menosprezando-o; agora, essa singularidade, mesmo nos seus aspectos mais medíocres, caricaturais ou pornográficos, submete-se voluntariamente ao desgaste provocado pelos olhares infinitos do mundo à sua/nossa volta — o anódino coexiste com o sublime, a ponto de nos levar a admitir que cada um deles se pode converter no outro ou, pelo meno, mascarar-se assumindo a pose do outro.
Daí a proliferação de registos, impossível de descrever ou classificar. Há o fotógrafo de paisagens. E o fotógrafo de grandes planos de si próprio. O Instagram do cão. O Instagram do gato. Milhões de cães. Milhões de gatos. O leitor de poemas. O escritor de poemas. O fotógrafo de poemas. Livros. Revistas. Colecções de fotografias antigas. Colecções de fotografias de lugares antigos. A estrela de cinema como modelo. A estrela de cinema, música ou culinária como arauto de uma qualquer transcendência existencial. A estrela de alguma coisa como militante de uma causa universal. O direito à diferença. Toda a gente é pelo direito à diferença. O filosófo de bolso. O filosófo, sem mais. Muitos cães a tomar a banho, entusiastas. Alguns gatos a tomar banho, relutantes. Livros velhos. Móveis velhos. Móveis novos. A namorada. O namorado. Gastronomia, para principiantes ou especialistas. O planeta reencenado como uma tribo de gastrónomos. Caixinhas de jóias. Janelas. Vinhos. Restaurantes. Jantares de grupos. Grupos que parecem só existir por causa dos jantares que promovem. Nostalgia de Hollywood. Super-heróis sem nostalgia. Jornais com artigos gigantescos. Resumos de artigos gigantescos. Frases em destaques  quadrangulares, susceptíveis de serem lidas no ecrã do telemóvel. Porquinhos a levar beijinhos. Bebés. Mais bebés. Ainda mais bebés. Discursos edificantes de pais e mães, sobretudo de mães, exaltando a pureza dos filhos. Bebés com cães. Bebés com gatos. Museus. Uma menina que parece passar a vida a fotografar-se para o Instagram. A tristeza. O cepticismo. Gritos de alegria. Um caniche da Croácia. Seguido por um chihuahua de Moscovo. As luzes de Moscovo. Os candeeiros de uma aldeia que não vem no mapa. Nudez interdita. Bikinis, quand même...
Subitamente, o Instagram disponibiliza-nos uma nova moral colectiva, afinal velha como o mundo, em forma de resgate das nossas angústias e desilusões: a humanidade faz-se com um pouco de tudo, da beleza radical, tão intensa que fica próximo da dor, até ao horror dos que, decididamente, publicam imagens do mundo como se o mundo coubesse no interior do seu cérebro raquítico. Talvez tudo isto seja uma forma de libertação.

Maquilhagem

Num comentário a uma foto de Cristina Ferreira no seu Instagram, alguém expressa admiração pela "coragem" de se mostrar sem maquilhagem, desse modo "inspirando" todas as mulheres — com o neo-feminismo, Greta Garbo morre todos os dias.

28 de agosto de 2020

Guerra fria

— A minha misantropia colide com a compaixão do meu interlocutor. Odeio-o ainda mais por isso, levando-o a redobrar a atenção com que protege o meu discurso. Somos duas intimidades separadas por uma fronteira inamovível, o que quer dizer que conseguimos estabelecer os códigos de uma nova guerra fria, fundada na admiração que o outro nos suscita.

27 de agosto de 2020

Cenas do futebol em pandemia

Muitos deles usando as máscaras da pandemia, adeptos (?) do Barcelona protestam pela anunciada saída de Lionel Messi. Assim se vive o social dos nossos tempos em rede. Curiosamente, em farsas deste género, nunca ninguém questiona os jogadores que juraram amor eterno aos clubes. O que, enfim, nos remete para uma estúpida aritmética: se o Barcelona tivesse perdido com o Bayern, não por 8-2, mas por 1-0, nada disto aconteceria, ainda que o resultado desportivo (a eliminação nos quartos-de-final da Liga dos Campeões) fosse rigorosamente o mesmo.

Morrer

A notícia da morte de alguém com quem, por alguma razão, profissional ou particular, convivemos chega sempre contaminada por uma perplexidade absurda: como é possível? De facto, há na nossa compaixão um toque de egoísmo que se confunde com um exercício de sobrevivência — com a morte daquela pessoa, que morreu em mim?

26 de agosto de 2020

Normal

De que falamos quando falamos de normalidade?
(A pergunta é sempre revolucionária, o que não significa que a revolução seja necessariamente uma bênção.)

Trânsito

Mistério indecifrável (que os confinamentos da pandemia não alteraram): as informações sobre o trânsito são sempre dadas em função de uma ânsia de "regresso à normalidade". Como se o nosso quotidiano fosse um prodígio de organização e serenidade apenas contrariado, aqui e ali, pelos sobressaltos provocados por alguns automóveis menos disciplinados. Quase sempre também, as vozes que escutamos são femininas, em pose maternal, por certo tentando apaziguar qualquer inquietação que nos possa assaltar. Será esta uma nova forma de feminismo?

25 de agosto de 2020

Informação & política

As notícias do Brasil, com a indiferença pueril de Jair Bolsonaro face à COVID-19, ou dos EUA, com Donald Trump pela mesma via, ao mesmo tempo que tenta minar a logística das eleições, produzem um bizarro efeito de saturação meditática e desgaste moral: aquilo que, tradicionalmente, se apontava a alguns políticos como manobras de bastidores passou a constituir a linha da frente das nossas "sociedades da informação" — foram os políticos que mudaram assim tanto, ou a informação que deixou de pensar o seu lugar social? Seja qual for a resposta, será sempre inquietante.

22 de agosto de 2020

"Cavani não será jogador do Benfica"

Eis um breve conto moral para os tempos do COVID-19. A sua inspiração provém de uma das notícias do dia, disponível, por exemplo, no jornal A Bola:

>>> Cavani exigiu €30 milhões líquidos por três anos de contrato, o que implicaria investimento de €60 milhões brutos para o Benfica, valor incomportável para os ‘cofres’ da SAD. Durante o processo negocial, o irmão e agente do jogador propôs que parte do pagamento fosse feito ‘por fora’, algo prontamente recusado pelas águias.

O leitor lê. Volta a ler. Pára por momentos, reflecte e compreende que deve abrir a janela — só assim poderá escutar os protestos das multidões ruidosas que se indignam quando o governo (qualquer governo) gasta dois tostões, e não três, nas chamadas actividades culturais. O leitor escuta atentamente, não se move, de modo a evitar qualquer ruído que possa perturbar o clamor que aí vem. Escuta e continua a escutar... mas não ouve nada.

21 de agosto de 2020

Da dureza do dinheiro

Cena ao balcão de uma instituição bancária. Um cidadão deposita uma soma que envolve menos de uma dúzia de notas. O funcionário toca as notas uma a uma, não para contar o valor envolvido, mas porque, diz ele, são novas e estão muito duras... Qual a relação disso com o seu trabalho? Acontece que deve passá-las, obrigatoriamente, pela máquina de contagem de notas. Dito de outro modo: a civilização da contabilidade generalizada não confia num ser humano para fazer contas. Efeito prático: o funcionário passa as notas, uma a uma, e vai anotando num papel os respectivos valores.
Em boa verdade, semelhante ritual será, em última instância, justificado pela necessidade de identificar possíveis notas falsas. O que, por ínvios caminhos, vai dar ao mesmo: as contas já nada têm que ver com a singeleza primordial da matemática, passaram a ser um despudorado teatro de máscaras.

20 de agosto de 2020

"Terceira idade"

Há qualquer coisa de insuportavelmente obsceno na escalpelização pública dos efeitos do COVID-19 em alguns lares da terceira idade ("terceira idade"... a própria expressão parece expor-se, agora, na sua ancestral desvergonha). Claro que importa apurar responsabilidades. Mas, uma vez mais, tudo se passa como se só soubéssemos funcionar como colectivo social enquanto promotores e espectadores de julgamentos sumários na praça pública, nomeando culpados que possam arder na fogueira da opinião pública ("opinião pública"... outra designação que passou a encobrir o próprio facto de não termos uma genuína cultura de troca de opiniões, preferindo antes a gritaria mediática). Infelizmente, a conjuntura não parece favorecer uma atitude genuinamente social. Eis uma pergunta possível para começar: que visão humanista, que práticas e políticas do envelhecimento — e para o envelhecimento — existem numa sociedade de permanente celebração de todos os desmandos e irresponsabilidades "juvenis"? Pior um pouco: uma sociedade que, em nome da concorrência e do lucro, associa quase sempre a boa performance profissional apenas aos que ainda não contemplam a hipótese da reforma.

Made in USA

A confluência de uma urgência sanitária — a pandemia — e uma tragédia política — Donald Trump — confere às eleições presidenciais americanas a inusitada dimensão de um teste realmente global. A saber: de que modo é possível, ou não, os modos de difusão de informação do século XXI desmascararem a mediocridade humana do actual Presidente dos EUA? Ou, pelo contrário: até que ponto a própria existência desse Presidente é um produto de tal conjuntura de informação?
No limite mais drástico, e também mais perverso, desta dinâmica deparamos com uma perturbação visceral: a que nasce da possibilidade de o aparato de comunicações em que vivemos ser, não um factor de incremento de hipóteses democráticas, mas um motor de derivas autoritárias.

18 de agosto de 2020

Ensaio

— Ensaio o sonho por vir, sem conseguir confirmá-lo. O certo é que já o sonhei, transformando o período do sono numa derivação perversa do estado de alerta.

Trend

Efeito pandémico: nos últimos anos, nasceu um chique anti-cinéfilo, assistindo-se à proliferação de espectadores que "só vêem séries de televisão"; agora, do cidadão anónimo ao exibidor mais angustiado, toda a gente proclama que a experiência de ver um filme numa sala escura é coisa insubstituível. Que haja críticos de cinema a dizê-lo e escrevê-lo há décadas, eis o que não conta para este campeonato. A vida cultural passou a ser, assim, uma algazarra seduzida pelo seu próprio vazio, enfim, um fenómeno de trends — aliás, dizer trend é chiquérrimo.

17 de agosto de 2020

Cinema & pandemia

Curioso fenómeno do mercado cinematográfico em cenário de pandemia: após várias décadas  [convém sublinhar: décadas] de formatação de um público maioritário orientado apenas [outra vez: apenas] para filmes de super-heróis e afins, alguns responsáveis pelas salas de cinema vêm chorar lágrimas de crocodilo, lembrando o valor insubstituível da experiência de um filme numa sala escura com um grande ecrã. Celebremos, por isso, o ecumenismo católico: até mesmo os crocodilos têm direito a ter razão.

Demasiado tarde

— O habitual anonimato dos rostos que pontuam os sonhos deu lugar ao aparecimento de figuras conhecidas mas, por assim dizer, irreconhecíveis, porque resistentes a qualquer aproximação. O sonho dramatiza-se, então, entre a expectativa de alguma confirmação por parte do interlocutor e a estranheza mais ou menos ameaçadora do seu comportamento. Ao mesmo tempo, a repetição cíclica de microscópicos acontecimentos faz com que, num grito sem som, o sonho me leve a proclamar que estou à beira de acordar. E não acordo. Ou, se acordo, sinto-me invadido pela sensação de que foi demasiado tarde — como num sonho.

16 de agosto de 2020

Mais dinheiro

Há que reconhecer que a persistência do futebol em pandemia envolve uma mensagem de absoluta resistência, com fortes componentes emocionais. Será, talvez, por isso, que nos esquecemos que, das transmissões televisivas aos bilhetes dos estádios, se trata de uma das indústrias mais hábeis a solicitar dinheiro (muito dinheiro) aos cidadãos comuns — os contribuintes, de facto.

"Hijos de p..."

Conhecemos mal o mundo em que vivemos. E tanto pior quanto, desde que se impôs a noção de "rede social" como uma espécie de oráculo cujas mensagens dispensam qualquer distanciamento ou avaliação (as formas de vigilância dos seus desmandos, nomeadamente das "fake news", envolvem o reconhecimento paradoxal de que o contexto em que surgem possui dons imaculados, porventura divinos), todas as actividades humanas estão automaticamente sujeitas a uma vigilância do "colectivo" cuja abrangência e legitimidade nasceriam, precisamente, da sua mera existência como agregador virtual de indivíduos. Consequência: qualquer grupo, por mais minúscula ou boçal que seja a sua existência, pode ser promovido à condição de juiz e tribunal de qualquer evento.
Assim acontece nos espaços de discussão "pública" (em rádio e televisão) e nas caixas de "comentários" dos órgãos de informação: na maior parte dos casos, todas as intervenções, incluindo as mais obscenas, sinistras e irresponsáveis, têm direito à mesma exposição de qualquer ponto de vista realmente complexo e arduamente fundamentado. Por estes dias, em tais espaços, qualquer cidadão surge automaticamente promovido à condição de "especialista" de todas as tragédias do planeta, a começar pelo COVID-19.
Exemplo assustador: o jornal espanhol Marca multiplica textos, especulações e sondagens sobre a derrota do Barcelona frente ao Bayern, "ilustrando" uma das suas peças com um video de 01m 05s em que se vê uma dúzia de "adeptos" (talvez menos...) que, entre outras coisas edificantes, proclamam: "Dad la cara hijos de p... nos meten 8 como si fueramos el Espanyol" (frase pedagogicamente citada na legenda do próprio video).
Assim se faz jornalismo nos nossos dias, para mais num jornal de justificado prestígio histórico, por muitos celebrado como uma referência emblemática no mundo do desporto. É, curiosamente, o mesmo jornal que, em 2013, acusou José Mourinho de ofender a história do Real Madrid e, no limite, a própria dignidade da nação espanhola por colocar Iker Casillas no banco de suplentes, dando a titularidade a Diego López, para depois consumar uma espectacular cambalhota filosófica: quando Mourinho foi substituído por Carlo Ancelotti, e tendo em conta que Casillas continuou a ser... suplente, a Marca teve uma revelação metafísica. A saber: "Diego López faz duvidar Ancelotti".
Decididamente, num tempo de tantos fait divers inócuos e estupidificantes, valeria a pena reflectir sobre o jornalismo, não apenas através de grandes considerações abstractas, não poucas vezes desligadas de qualquer relação pertinente com a realidade profissional, mas também analisando atribulações deontológicas deste teor.

Do pensamento como pandemia

Lentamente, vai-se insinuando uma inquietação em que o emocional e o ideológico coexistem como as duas metades de um rosto. A saber: há um pensamento pandémico sobre a pandemia, cada vez mais forte, mesmo tendo em conta que os números de infectados e falecimentos são muito baixos. O que leva a supor que se consolidou um novo sistema de percepção do mundo — já não se vive, somos apenas contorcionistas da arte de evitar a morte.
O que, enfim, nos devolve uma interrogação tabu: de onde vêm as ideias?

14 de agosto de 2020

Futebol e engenharia

Notícia a ponderar: a contratação de Cavani para o Benfica implica todo um processo de "engenharia financeira"... Talvez ele possa trabalhar em regime de lay-off.

13 de agosto de 2020

Do naturalismo futebolístico

Notícias sobre dinheiros para a saúde pública ou uma qualquer actividade artística vêm quase sempre acompanhadas de perguntas, hesitações ou insinuações sobre a dimensão de gravidade decorrente dos valores gastos ou a gastar. No caso do futebol, referem-se milhões para este, milhões para aquele, com a indiferença de quem está apenas a dar conta de uma coisa natural — até mesmo o novo naturalismo é futebolísico.

Os milhões do futebol

Algures, num dos programas televisivos sobre futebol, um comentador entusiasta (e, honra lhe seja feita, de empenhada sinceridade) avalia as possibilidades de contratação de grandes craques estrangeiros para algumas equipas portuguesas. E os milhões necessários? Pois bem, argumenta ele, é preciso que apareçam porque todos vamos ganhar com isso — e imaginamos os dias radiosos que irão viver o futebol, os adeptos, os clubes, o país e os vendedores de bifanas... Insólito tempo mediático este em que vivemos. Para lá da obscenidade de um discurso deste teor face aos dramas quotidianos decorrentes da pandemia e da hiper-fragilização do mercado de trabalho, não tenhamos dúvidas: se algum intelectual se precipitasse a sugerir algo de semelhante para a área do cinema, ou até mesmo do badminton, estaria a esta hora a ser metodicamente queimado na fogueira dos "tribunais" públicos.
Assim vai o nosso diálogo social.

12 de agosto de 2020

O ar do futebol

>>> "... e seguramente alguns adeptos sabemos que vêm sempre porque querem estar basicamente a respirar o mesmo ar que os seus jogadores nas mesmas cidades..."

Dispensemos as considerações de natureza gramatical. Digamos apenas, para simplificar, que as palavras do secretário de Estado do Desporto, celebrando a realização da Liga dos Campeões em Portugal, não terão sido um primor de felicidade discursiva, acuidade clínica, subtileza social ou pertinência política — seguramente, basicamente.

A-L-I-E-N-S

Toda a nossa "comunicação" passou a estar contaminado por violentas formas de moralismo. Não porque tais formas proponham alguma moral sobre os respectivos conteúdos (para usarmos a palavra consagrada pelas rotinas informativas); antes porque, através de um calculismo anónimo, se organizam para instalar a noção purificadora segundo a qual há uma moral prévia que comanda e legitima tudo aquilo que se "comunica".
Assim, vemos e ouvimos autores de discursos de trágico vazio de pensamento a proclamar, frase sim, frase não, que falam, cantam ou militam em nome do "planeta", das "mulheres", dos "negros" ou do "direito à diferença"... Não dizem três palavras seguidas capazes de gerar qualquer coisa de minimamente consistente, mas estão do lado de uma razão que, no limite mais patético, ignora a sua obscenidade — implicitamente, condenam-nos se nos atrevermos a nomear a sua mediocridade discursiva.
Por estes dias, nos EUA, há mesmo quem tenha descoberto que Aliens: O Recontro Final (1986), segundo episódio da saga "Alien", realizado por James Cameron, é um marco na história do feminismo... Não haveria maneira mais prática, nem mais eficaz, nem sequer mais reaccionária, de anular a complexidade e a urgência dos temas que, supostamente, se convocam.


10 de agosto de 2020

"As ideias do meu corpo"

Há uma nova ideologia da doença a circular. O individualismo pueril ("o meu fígado está muito pior que o teu estômago...") deu lugar a uma consciência mais metódica ou, pelo menos, menos fútil da singularidade de cada doente — mais exactamente: da aventura única, insubstituível, de cada corpo. Não seria exactamente disto que Barthes falava quando formulava a hipótese de seguir as ideias do meu corpo, reconhecendo que "o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu". Ou talvez fosse.

8 de agosto de 2020

Bloco-notas *

* de um cidadão anónimo em tempos de pandemia.

— Com a acumulação de semanas em rotinas fechadas, quase sem sair de casa, os sonhos adquiriram o peso, a força e a perturbação de uma realidade alternativa que, a qualquer momento, pode ocupar a realidade a que chamamos primeira. É uma estratégia bélica, montada em paisagens recônditas do meu corpo, em que a noção de ocupação possui qualquer coisa de militar: a consistência da realidade original decompõe-se em infinitos fragmentos sonhados, lineares e verosímeis, mesmo quando assombrados pelos fantasmas de uma inquietação sem origem detectável.

— Os sonhos perderam a unidade de episódios fechados em que, nem que seja por indizível medo, gostamos de detectar algum simbolismo susceptível de apaziguar o nosso medo. O medo já não decorre da ameaça de um desenlance cruel. Em boa verdade, nunca há desenlace, já que tudo começa sem começar, transportando o peso de uma história trágica, conduzida por um narrador  anónimo, sósia de alguém, que resiste a esclarecer o já acontecido.

— Antes de adormercer, já estou dentro do sonho. A certeza dessa condição de absoluta vulnerabilidade provém, não da sinalização do começo do sono, mas da certeza sem forma, translúcida e omnipresente de que o pensamento com que procuro racionalizar o que está a acontecer tem a sua origem no próprio sonho que vai começar.

6 de agosto de 2020

Holograma

No dia a dia, alguns cidadãos caminham pela rua com a máscara segura nas orelhas, mas descida para o queixo. Como uma espécie de holograma simétrico de alguns inacutos tabagistas: "Um maço de cigarros dá-me para dois ou três dias, mas não sou viciado..."

5 de agosto de 2020

Lirismo

A pouco e pouco, as urgências impostas pela pandemia favoreceram a instalação de uma "ideia" política que, em boa verdade, supera as clivagens entre os territórios imaginários e imaginados de direita(s) e esquerda(s). A saber: todas as crises financeiras devem ser, obrigatoriamente e automaticamente, debeladas pelo Estado.
Efeitos práticos de tal lirismo? Como se não bastasse o sofrimento de quase todos, ainda se agravam os seus efeitos com a miragem idílica de um Estado que seria uma espécie de tesouro infindável a funcionar num mundo sem pandemia. Em boa verdade, pensar o que seja um Estado tornou-se, no século XXI, um luxo que a cena política, quase sempre duplicada pela cena mediática, prefere repelir.

3 de agosto de 2020

Intervalo

Fixos os olhos
Azuis gotas suspensas
Na eternidade

3 milhões

Citação do dia: "Jorge Jesus terá todas as condições para fazer o seu trabalho". Fica por esclarecer se o ordenado anual de 3 milhões de euros faz parte dessas condições. Ou não passa de um pormenor sem importância.
Isto partindo do princípio que todos os portugueses têm todas as condições para fazer o seu trabalho — é verdade que esta observação tem o seu quê de demagógico, mas consegue, pelo menos, distanciar-nos da ditadura mediática da liturgia futebolística.

O "social" em "rede"

A indefinição moral do colectivo faz proliferar os discursos individuais moralizantes. É essa, aliás, a impostura visceral da vida em "rede": fazer-nos acreditar que a cacofonia dos indivíduos gera, por anónimo milagre, a consistência do "social".

Humano/desumano

O desafio profissional e ético colocado pela pandemia ao jornalismo é linear. Pode definir-se através de uma dicotomia muito básica: trata-se de promover formas inteligentes de enfrentar a catástrofe ou apenas de, dia após dia, encontrar "culpados" circunstanciais, mais ou menos incautos e indefesos, para mascarar os dramas decorrentes das nossas limitações colectivas?
Ou ainda: trata-se de escolher a dimensão humana ou o espectáculo do desumano?

2 de agosto de 2020

Policial

Cada vez que há uma situação social de violência nos subúrbios, cada vez que há um fogo, cada vez que a estupidez de alguns adeptos do futebol se traduz em agitação mais ou menos violenta, porque é que há sempre alguém que sugere que as forças policiais chegaram "atrasadas"? E porque é que esse alguém, não poucas vezes, é um jornalista? Mesmo vivendo a crueldade colectiva do COVID-19, temos dificuldade em reconhecer que as convulsões que agitam a comunidade estão enraizadas em factores necessariamente complexos, muito para lá de qualquer determinismo redentor de causa e efeito, por vezes enredados nas nossas vidas ao longo de dezenas ou centenas de anos. Como se a chegada da polícia 10 minutos "antes" fosse um factor de milagrosa pacificação das nossas contradições internas. Aliás, explicar tudo pela qualidade do policiamento, por mais necessário e competente que seja, é dar mostras da nossa  frágil identificação com a Lei — não apenas aquilo que está legislado, mas um sistema (escrito e afectivo, material e simbólico) que espelhe um sistema de valores em que todos nos reconhecemos.

Apanhados

Que passa pela cabeça da pessoa que faz uma entrevista não revelando outra preocupação que não seja apanhar o entrevistado em contradição? Que lhe resta de desejo de conhecer o mundo à sua volta? Porque razão, ou em nome de que lei, se coloca na posição de quem representa uma entidade virginal — o jornalismo, precisamente — que se distinguiria pela legitimidade de tratar o seu semelhante como obrigatoriamente suspeito de algum desvio, pecado ou crime?

Tóxico

Tóxico. Toxicidade. Até mesmo as palavras que nos inquietam só adquirem nova vida social através do futebol. Eis a suprema toxicidade futebolística: a de nos encerrar o mundo na sua linguagem, nos limites da sua linguagem. Wittgenstein também começou pelo futebol — mais ou menos.

1 de agosto de 2020

Da liturgia

A nossa dinâmica social define-se através da conjugação de três entidades enredadas numa indizível perversidade (indizível porque, precisamente, interdita às práticas discursivas mais ou menos colectivas): primeiro, reagimos a qualquer facto que contenha ou atraia a noção de catástrofe; depois, rapidamente reduzimos as nossas dores à urgência de nomear um ou vários culpados; enfim, acreditamos, ou construímos um aparato mental que nos leva a acreditar que acreditamos, que a agitação que somos capazes de gerar com as duas fases anteriores nos conduzirá a alguma forma de redenção, porventura de purificação.
Percalços discursivos dos políticos, acidentes de comboio ou guerras entre "famosos" — tudo serve para alimentar esse tríptico imaginário em que, de facto, julgamos vislumbrar a lógica de uma arquitectura de relações a que chamamos "sociedade".
Ilustrando e, de algum modo, confirmando o nosso triste viver colectivo, o COVID-19 inscreveu-se nessa dinâmica como entidade rebelde, resistente às nossas patéticas liturgias — temos medo e algo nos diz que não somos dignos do nosso medo.