Conhecemos mal o mundo em que vivemos. E tanto pior quanto, desde que se impôs a noção de "rede social" como uma espécie de oráculo cujas mensagens dispensam qualquer distanciamento ou avaliação (as formas de vigilância dos seus desmandos, nomeadamente das "fake news", envolvem o reconhecimento paradoxal de que o contexto em que surgem possui dons imaculados, porventura divinos), todas as actividades humanas estão automaticamente sujeitas a uma vigilância do "colectivo" cuja abrangência e legitimidade nasceriam, precisamente, da sua mera existência como agregador virtual de indivíduos. Consequência: qualquer grupo, por mais minúscula ou boçal que seja a sua existência, pode ser promovido à condição de juiz e tribunal de qualquer evento.
Assim acontece nos espaços de discussão "pública" (em rádio e televisão) e nas caixas de "comentários" dos órgãos de informação: na maior parte dos casos, todas as intervenções, incluindo as mais obscenas, sinistras e irresponsáveis, têm direito à mesma exposição de qualquer ponto de vista realmente complexo e arduamente fundamentado. Por estes dias, em tais espaços, qualquer cidadão surge automaticamente promovido à condição de "especialista" de todas as tragédias do planeta, a começar pelo COVID-19.
Exemplo assustador: o jornal espanhol Marca multiplica textos, especulações e sondagens sobre a derrota do Barcelona frente ao Bayern, "ilustrando" uma das suas peças com um video de 01m 05s em que se vê uma dúzia de "adeptos" (talvez menos...) que, entre outras coisas edificantes, proclamam: "Dad la cara hijos de p... nos meten 8 como si fueramos el Espanyol" (frase pedagogicamente citada na legenda do próprio video).
Assim se faz jornalismo nos nossos dias, para mais num jornal de justificado prestígio histórico, por muitos celebrado como uma referência emblemática no mundo do desporto. É, curiosamente, o mesmo jornal que, em 2013, acusou José Mourinho de ofender a história do Real Madrid e, no limite, a própria dignidade da nação espanhola por colocar Iker Casillas no banco de suplentes, dando a titularidade a Diego López, para depois consumar uma espectacular cambalhota filosófica: quando Mourinho foi substituído por Carlo Ancelotti, e tendo em conta que Casillas continuou a ser... suplente, a Marca teve uma revelação metafísica. A saber: "Diego López faz duvidar Ancelotti".
Decididamente, num tempo de tantos fait divers inócuos e estupidificantes, valeria a pena reflectir sobre o jornalismo, não apenas através de grandes considerações abstractas, não poucas vezes desligadas de qualquer relação pertinente com a realidade profissional, mas também analisando atribulações deontológicas deste teor.