30 de setembro de 2020

Egoísmo

— A doença faz-me esquecer que o outro existe: eis a insolência do egoísmo sobre o qual se constrói a teia social — sobre e sob.

Aborrecimento

O infantilismo mediático — no tratamento de espectadores e ouvintes — deixou de ser uma estratégia de mobilização de audiências. Em boa verdade, passou a existir como um valor "natural": tu que me vês e escutas és uma criança que eu identifico, albergo e protejo, evitando que gastes energia a pensar na tua própria condição. Não admira que, tanto em rádio como em televisão, as crianças sejam reduzidas a monstrinhos patetas que importa distrair, salvando-os do aborrecimento. Eis o pesadelo dos sacerdotes mediáticos: que alguém, seguindo-os, se aborreça.

Morrer

— Penso, por vezes, que nenhuma relação que possamos estabelecer, tu e eu, depende de qualquer motivação afectiva, a não ser o dinheiro que entre nós circula ou pode circular. Pergunto-me, por isso, se a minha saúde possui ainda algum valor, ou se o valor que nela possa manifestar-se apenas existe através do dinheiro com que alguém, entidade humana sem rosto, diz suspender a minha morte anunciada. Reconheço-me, assim, como um ser para a morte — a promessa decorre da mais bela e mais radical inteligência, mas a sua história política é assustadora.

29 de setembro de 2020

Ciência & política

Através das pressões práticas e existenciais da pandemia, a política viu-se compelida a reencontrar uma divisão ontológica que nasceu, afinal, de um sentimento de culpa do sistema de valores da democracia. A saber: é preciso fazer política acolhendo a ciência como entidade que serve a comunidade sem envolver considerações políticas. Tal purificação das origens acontece num contexto em que, cada vez mais, os discursos provenientes da área científica envolvem derivações políticas — nem que seja através da avaliação, positiva ou negativa, do investimento do Estado nas estruturas da Saúde.
Através do incómodo que tudo isso gera, ficamos a perceber que o idealismo democrático se foi dispensando de qualquer reflexão sistemática sobre as convulsões do espaço científico, como se a investigação do mundo existisse como uma espécie de duplo clínico desse outro continente imaculado que seria a natureza — enfim, como se a ciência fosse uma coisa natural e não um permanente labor de enunciação crítica do próprio conceito de natureza.
Provavelmente, tal tensão não pode produzir qualquer equilíbrio definitivo — a instabilidade conceptual é mesmo o seu inevitável modo de existência. Mas é algo desconcertante que muitos dos seus protagonistas — políticos e cientistas — se comportem como se pertencessem a uma agência de serviços que, de vez em quando, recorre ao know how do parceiro do lado.

Camilo n'est pas là

As especulações jornalísticas sobre a reconversão dos impulsos amorosos estão marcadas, hélas!, por um pudor que se desconhece, enredado numa pueril dimensão filosófica, inevitavelmente comovente. Isto porque são sempre, malgré tout, divagações sobre relações sexuais, agora assombradas pela nova lei apócrifa — se te toco, posso estar a tocar na tua doença; se o nosso enlace faz com que os limites dos nossos corpos se confundam, a morte que transportamos passa a exprimir-se através de uma microscópica convulsão de trocas e fluidos. O que, em boa verdade, corresponde à morte anunciada de qualquer forma de romantismo, quer dizer, à sua reconversão numa guerra de hormonas. Assim será, mas só mesmo por distracção política ou alheamento moral não nos demos contas das trágicas evidências da pré-pandemia, a começar pela ocupação selvagem do quotidiano social pelos horrores do Big Brother televisivo. Impossível evocar a pulsão romântica como se, numa esquina do tempo, nos tivéssemos acabado de cruzar com Camilo Castelo Branco.

Corpo a corpo

— Autoscopia. Ver o corpo como se estivesse fora do corpo. Deixou de ser alucinação para se impor como regra social, pressuposto de qualquer troca, discurso existencial. Quando eu morrer, não sou eu que morro — di-lo-ei na altura, se não morrer antes.

28 de setembro de 2020

Telefutebol

Ninguém dá por isso, ou talvez ninguém queira lidar com isso, mas o futebol instalou — e, de alguma maneira, instilou — no nosso modo de ver o mundo uma noção determinista do corpo. Aliás, em rigor, trata-se de um efeito específico da conjugação futebol/televisão: o corpo já não existe como entidade que confirma e supera a nossa identidade (porque "não tem as mesmas ideias que eu"), subsistindo apenas como signo parasita de uma verdade que se consagra na identificação dos movimentos "legais" e "ilegais". Entretanto, no "Big Brother", as performances sexuais são tratadas como moeda única de uma bolsa (dita) de valores humanos. São produtos da mesma ideologia.

Bola_mão_futebol

Quando é que é "bola na mão" ou "mão na bola"?
Pelo menos tanto quanto os temas directa ou indirectamente relacionados com a pandemia, da psicologia à economia, a ponderosa questão futebolística da avaliação dos lances em que há contacto entre bola & mão vai alagando o quotidiano com a sua pueril pulsão óptica. Nela se exprime outra força normativa, reveladora da pobreza social a que chegámos — é a pulsão legalista que nos força (ou quer forçar) a entender todas as formas de comportamento como eventos cuja justeza, por vezes justiça, está antecipadamente regulada por algum preceito legalista definido e promovido como essencial para a correção do nosso viver. Viver?

26 de setembro de 2020

Cinema

Pesadelo cognitivo: jovens de todo o mundo, muito sérios na seriedade que lhes assiste, acreditam que basta postarem-se em frente a uma câmara, falando (falando, falando, falando...) sobre um determinado filme para que nós fiquemos com uma espécie de "chave mestra" para a compreensão do referido filme. Dir-se-ia que, por causa do recato que a pandemia impôs, esses jovens são peões de uma miséria intelectual em assustador crescimento, uma verdadeira brigada de multiplicação de ignorância crítica e irresponsabilidade mediática, automaticamente desculpada pela noção de "juventude" — como grupo cujos disparates seriam sintoma de uma verdade natural, comovente e incontestável — induzida pelo social em rede. Não admira que haja cada vez menos pessoas, de todas as gerações, que tenham curiosidade em conhecer o cinema através das suas especificidades. Sim, qualquer melodrama de Vincente Minnelli é, como qualquer telenovela, uma narrativa sobre famílias, casais e amores atribulados — mas quem é que ainda vê a diferença entre uma coisa e outra?

Escola / Estado

As escolas enfrentam uma verdadeira quadratura do círculo: como fazer funcionar aquilo que, para lá da transmissão de conhecimento, não pode deixar de envolver um projecto de socialização, quer dizer, tanto no plano físico como nas estruturas simbólicas, uma efectiva redução das distâncias?
Muitas das reflexões que proliferam cedem à facilidade de transferir para o Estado a total responsabilidade das dificuldades e impasses que todos conhecemos ou, pelo menos, pressentimos. Há qualquer coisa de pueril nessa saga culpabilizante. E não porque, legitimamente, cada um possa considerar as medidas governamentais como "melhores" ou "piores". Antes porque a pandemia fere a própria ideia de Estado. Mais do que isso: qualquer política de transmissão de saber.

25 de setembro de 2020

O mapa

Dizer que o mapa político do país se está a transfigurar por causa da pandemia — e, de alguma maneira, através das suas incidências públicas e privadas — não deixa de ser uma curiosa argumentação que talvez nos ajude a conter algum desespero. Resta saber se tal lógica de "causa-e-efeito" não passa de um daqueles enunciados teleológicos capaz de alimentar semanas de agitação noticiosa... até chegar outra argumentação que mantenha o imaginário mediático a funcionar no vazio.
Ou ainda: será que já não somos capazes de pensar politicamente a política (Godard) sem cedermos aos jogos florais da aceleração informativa?

Restos

É verdade que, face às restrições impostas pela pandemia, a festa do Avante gerou reparos mais ou menos contundentes que não se abateram sobre outras iniciativas com conotações políticas. Os comunistas estão indignados, não entendendo, afinal, que continuam a permanecer, assim, no imaginário político do país — ou como a morte institucional e política do comunismo pode ser vivida através de um resto de energia simbólica. Honi soit qui mal y pense.

24 de setembro de 2020

A segunda morte de Stendhal

Assistindo às atribulações sexuais de qualquer telenovela, dir-se-ia que já ninguém sente nada que não se reduza ao mais triste maniqueísmo hormonal. Já era assim antes da pandemia, continua a ser assim durante a pandemia. Como se fosse imperioso matar Stendhal outra vez.

23 de setembro de 2020

E-mails

Entre a surpresa e o protesto, manifestando cordialidade ou espírito ofendido, alguém responde a um e-mail nosso, chamando a atenção para o facto de não termos abordado o assunto que motivou a troca de informações. Na verdade, a reacção não tem qualquer sustentáculo racional: a resposta está lá, nos parágrafos finais — pura e simplesmente, o nosso interlocutor não leu.
O episódio repete-se, torna-se regular e, apetece dizer, viral. Poderia ser um sinal de ansiedade deste presente pandémico, um sintoma da instabilidade emocional do quotidiano assombrado pelos rituais de resistência ao COVID-19. Mas não: o "vício" é anterior, foi-se instalando no funcionamento (profissional ou privado) de muitas pessoas como uma espécie de perversão comunicacional de quem já não sabe o que é escrever uma carta e que, em última instância, foi condicionado a "pensar" através das medidas do Twitter e das abreviaturas codificadas dos SMS.
Dito de outro modo: o cidadão comum nunca lidou com tantos textos e nunca leu tão pouco. Culturalmente, a sobrecarga de linguagens gerou — e sustenta — uma nova forma de analfabetismo. Não ler as últimas linhas passou a alimentar a ideia de que somos mais rápidos do que a escrita, a ponto de dispensarmos o conhecimento dos seus limites. 

20 de setembro de 2020

Primordial

Qualquer afirmação pitoresca, provocatória ou apenas linearmente estúpida de um político tem garantido um eco interminável no espaço mediático. Será esta uma forma de pandemia que desconhecemos? Ou que integrámos como coisa natural? Ou que, ingenuamente, julgamos que não se traduz em efectivo poder político?
Em boa verdade, nem sequer serão essas as questões a colocar. Talvez seja útil regressar à crueza primordial, ao problema crucial — o que é ou pode ser uma existência comunitária — e perguntar: porque aceitamos viver tão mal?

19 de setembro de 2020

Alucinação

— A doença promove uma alucinação de que não fujo, aceitando a nova forma de intimidade que nela, e através dela, se configura. O teu corpo não está aí, mas eu estou aqui com o teu corpo alucinado. É uma forma de amor, sabes?

17 de setembro de 2020

Depois de Noé

O COVID-19 trouxe uma revalorização ou, mais exactamente, uma proliferação da palavra "natureza". Desde logo, porque por muitos discursos passou a circular a noção bélica (apetece dizer: administrativa) segundo a qual a natureza funciona como uma entidade que, ciclicamente, obedecendo às determinações racionais de um qualquer comité imaginário, uma espécie de resto simbólico da Arca de Noé, reage aos desmandos dos humanos, vingando-se com pandemias, tornados e outras contundentes atribulações. Como complemento, proliferam também as militâncias, das cientificamente elaboradas até às derivações "espirituais" dos restos requentados de uma New Age mais ou menos intemporal, que proclamam a necessidade, mais do que isso, a urgência de os mesmos humanos assumirem modelos de comportamento que, para lá da defesa dos elementos naturais, funcionem como redescoberta e revalorização da nossa dimensão natural — dos políticos mais sensatos à mais desavergonhada publicidade, tudo isso circula no quotidiano como uma nuvem virtual (mais uma...) cuja chuva abençoada recebemos com alegria ou desencanto.
Como é óbvio para toda a gente (Donald Trump insiste em cultivar-se como excepção), nada disso é estranho aos dramas que assolam as paisagens, cidades incluídas, do nosso querido planeta. E só mesmo por ignorância, estupidez ou cinismo, porventura através da conjugação dessas três duvidosas qualidades, será possível negar que, da delapidação da riqueza dos oceanos ao ar que respiramos, a humanidade enfrenta problemas que estão longe de se resolver apenas através da separação do lixo caseiro em recipientes de três cores.
Acontece que tudo isto tende a funcionar como se, de facto, a n-a-t-u-r-e-z-a existisse como uma espécie de vinheta bíblica, automaticamente reconhecível e identificável na sua verdade primordial (divina, por certo). A sua pureza pervertida pela nossa irresponsabilidade colectiva seria, ou será, reposta através de ambiciosos programas de defesa do ambiente, pontuados por concertos de boa vontade em que os símbolos da música clássica e os embaixadores do pimba se cruzam em duvidoso ecumenismo.
O mais difícil — e tanto mais quanto, socialmente, passámos a menosprezar tal hipótese — será reconhecer que não há dois lados mecanicamente divididos, um dos quais seria a "natureza", o outro a vida "social". Historicamente, sabemos que qualquer sociedade se faz também através de uma determinada visão dos elementos a que chamamos naturais. Dito de outro modo: a natureza é o primeiro índice da nossa cultura.
Como cidadãos responsáveis, podemos comprar o novo automóvel 100% eléctrico, amigo do ambiente — o certo é que tanto não basta para que a gata que está aqui a dormir deixe de ser um enigma desafiante.

13 de setembro de 2020

Em família

O prolongamento da situação de pandemia gerou um novo alerta: as famílias devem redobrar os cuidados de protecção, sobretudo quando se cruzam os seus elementos que vivem em casas e localidades diferentes. Dito em bom português: desaconselham-se os almoços em família. Eis uma maneira didáctica, eventualmente cruel, de nos lembrar uma evidência que gostamos de esquecer ou minimizar: a vida familiar é um elemento fulcral da vida social.

10 de setembro de 2020

20,21 € — um conto moral *

Era uma vez um país em pandemia que, a acreditar nas notícias que circulam, possui um sistema bancário que, em anos recentes, conseguiu a proeza de perder (ou alienar, ou desviar, ou colocar em parte incerta...) alguns milhões de euros. Aliás, corrige o narrador: milhares de milhões de euros.
Nesse mesmo país, num dia quente do final do Verão, um cidadão incauto acorda com os sinais sonoros das maravilhas que a tecnologia amistosamente lhe faculta: por SMS e voicemail (as designações anglo-saxónicas são comoventes, a começar pela sigla de simétrica elegância do Short Message Service) recebe a informação cordial de que a sua conta bancária apresenta um saldo negativo.
Não são milhões. Não são milhares. Já agora, observa o narrador surpreendido com as peripécias da narrativa que lhe calhou revelar ao mundo, nem sequer são centenas. Mas não deixa de ser uma revelação chocante, capaz de abalar as estruturas morais da nação: o défice é de nada mais nada menos que 20 euros e 21 cêntimos. 20,21 €: eis o preço que importa pagar para nos salvar do apocalipse.
O banco, delicadamente, solicita o provisionamento da conta. Embora as mensagens não comentem tal hipótese, o cidadão compreende que, através do mesmo método, os milhões desbaratados irão ser recuperados. Por esse mundo fora, cidadãos em dívida como ele, honestos e cumpridores, esbracejam, felizes, a provisionar. Aleluia!
Entretanto, reconhecido, regista a aprendizagem da palavra mágica que, até este dia, não fazia parte do seu mísero léxico: provisionamento. A moral da história é, por isso, de natureza linguística e gramatical. Sibilinamente casta, como se impõe. E nós agradecemos.

* Baseado em factos verídicos.

Simulacros

A veneração dos simulacros — eis uma definição possível para a ideologia que passou a conduzir os movimentos de identificação das massas. Daí nascem os políticos apostados em redifinir a nossa relação com a verdade. Ou os futebolistas promovidos e adorados como encarnação imaculada da identidade nacional. Ou ainda Michael Bublé, feliz pela sua patética imitação dos cantores do Rat Pack. A felicidade tornou-se mesmo o simulacro perfeito — repare-se como todos os dias, em algum ecrã de televisão, há alguém preocupado com os impasses da nossa existência. Quem os convocou?

"Influencers"

As contas de Instragram dos chamados "influencers" sobrevivem através da pandemia. Em boa verdade, parecem até ser potenciadas pela situação: o homem/a mulher protagonista multiplica as suas influências para uma plateia virtual que, através de mensagens de obrigatória celebração, encontra as imponderáveis justificações para determinados gestos de consumo — dos mais recentes modelos de sapatos ou malas de viagem até à filosofia requentada de decrépitos acessos de nostalgia "new age".
O resultado envolve qualquer coisa de infinitamente triste: o protagonista funde-se por completo com o produto, muito para lá da condição convencional de mensageiro ou promotor. No limite, o protagonista é o produto.
Sobre as jovens mulheres que desempenham tais papéis, não há qualquer protesto feminista, nem sequer uma discreta perturbação anímica — como se o feminismo tivesse esquecido as suas Beauvoir, reais e simbólicas, reduzindo todas as relações humanas ao respectivo enquadramento legal (cuja importância não está em causa). Se isso serve de consolação, lembremos que a situação do lado masculino não é mais edificante. E convenhamos que é sempre mais cómodo proclamar que Sartre era uma besta.

8 de setembro de 2020

Devushkin

Por cada nova carta de Makar Devushkin à sua Varvara Alexeyevna (Varenka, Varenka!), há qualquer coisa de imponderável, mas também de estranha fisicalidade, que nos pode levar a desconfiar de todas as suas palavras, confissões e utopias. Como se a miséria da sua existência induzisse um traço de cinismo moral. Somos nós que somos ainda mais cínicos? Ou Dostoievski que possui acesso à maquinaria secreta dos laços humanos, por isso mesmo descrendo de tudo e de todos?

Tabu (cont.)

Calando os críticos menos entusiastas (incluindo este humilde escriba), Cristiano Ronaldo marca dois golos, o necessário e suficiente para fazer o muito positivo resultado final na Suécia. Resta saber se ainda há uma equipa ou a administração pública de um mito. Até porque, mesmo em cenário de pandemia, os oráculos de serviço continuam a promovê-lo como obrigatória encarnação da "portugalidade". Será que o facto de termos ganho à Suécia justifica tamanha histeria ideológica?

7 de setembro de 2020

Conto

— A gata acolhe o nosso amor, devolve-o, nunca abdicando dos requebros selvagens do seu ser. Mostrar-nos que não a dominamos é, talvez, a maior prova de amor — expor a ilusão pueril da posse. Humanos e imperfeitos, trabalhamos para aceitar a sua narrativa.

6 de setembro de 2020

Que lógica?

— Sonhar sabendo que é sonho e, apesar disso, temer duplamente as ameaças que me assombram, adquirindo perversa configuração material. Sonho assim por alguma razão, tecida entre medos vividos e catástrofes imaginadas, mas a sua lógica escapa-me — como num sonho.

Empatia

Empatia, palavra mágica destes tempos de tantos laços quebrados, outros ensaiados, muitos desejados, muitos impossíveis. Na secção de Opinião de The New York Times, Molly Worthen, professora de História e jornalista freelance, escreve sobre os dramas da empatia em cenário de pandemia ['The Trouble With Empathy']. Artigo obviamente mobilizador que nos recoloca perante os modos que nos levam, ou não, a reconhecer as singularidades dos outros. Mais ainda: perguntando que modelos de pedagogia, nomeadamente na escola, nos podem abrir portas para tais singularidades— o artigo apresenta mesmo uma sugestiva entrada: "Podemos realmente ser ensinados a sentir a dor de cada um dos outros?"
Começando por referir as experiência por que está a passar a sua filha no jardim infantil, Worthen destaca a importância dos livros na construção da empatia, isto é, no conhecimento e reconhecimento da história irredutível de cada ser que nos surge como estranho, ou melhor, exterior ao nosso universo. Celebrando o primitivo e maravilhoso acto de leitura, portanto.
E, no entanto, tudo isto parece decorrer da análise de um universo em que o livro se apresenta como elemento "natural" de uma cultura global subtitamente esvaziada do assombramento social das "redes". A explanação desenvolve-se, assim, omitindo o facto de vivermos num mundo que, através de milhares de milhões de polegares ao alto, impôs a mais agressiva ilusão empática: dispondo do mapa etéreo de infinitos links virtuais, teríamos encontrado a comunicação automática e ideal, fundando uma comunidade de empatia universal, cândida e irrevogável. Ainda que com intenso e comovente amor pelos livros, como é possível pensar a nossa relação com o outro, ignorando isto?

5 de setembro de 2020

Tabu

Portugal, 4 - Croácia, 1 — mesmo sem espectadores, o futebol detém esse poder de transfigurar a pandemia em efeito colateral. Perversamente, a selecção portuguesa de futebol passou a jogar francamente melhor sem Cristiano Ronaldo. Na filosofia dominante no futebol, isso diz-se através de uma maravilhosa derivação retórica: sem Ronaldo, a selecção "joga diferente".

4 de setembro de 2020

Talking heads

Antes do COVID-19, durante o COVID-19, por certo no pós-COVID-19, os nossos métodos correntes de encenação e auto-encenação — dos noticiários televisivos ao Instagram, passando pelos videos dos jornais — transformaram-nos em locutores do lugar que temos, ou imaginariamente ocupamos, no tecido social. Somos todos talking heads, uns profissionais, outros incautos, tendo integrado a respectiva postura como o supra-sumo da comunicação com os outros. Dir-se-ia uma brincadeira de jardim infantil: inventar um tele-jornal e fazermos de locutor — com um ecrã de cartolina colorida.
Curiosamente, a palavra locutor caíu em desuso — e há até quem a encare como um insulto mal disfarçado. Ironicamente, a sua objectividade é contundente: diluímo-nos no exercício da locução, o nosso clímax comunicacional confunde-se com a leitura do tele-ponto. Dir-se-ia que tudo conflui no know how de uma pose. Provavelmente, era para isto que Marshall McLuhan nos queria avisar quando dizia que "o meio é a mensagem".

2 de setembro de 2020

Linguagens

No dia 31 de Agosto, a editora Cotovia anunciou o seu encerramento no final do ano.
A 1 de Setembro, Cristina Ferreira divulgou o título do seu novo programa televisivo.
Não há nenhuma relação de causa e efeito entre as duas notícias. Tão só a evidência cruel de que o nosso presente se faz da coexistência de tais factos — com a pandemia a desenhar um cenário em que, por razões de sobrevivência, fingimos que falamos uma só linguagem.

1 de setembro de 2020

A nova ética

Tu podes ser o meu vírus, eu posso ser a tua infecção — a nova ética social envolve uma desmesurada crueldade. E também um cristalino didactismo. A saber: nenhuma relação social é um dado adquirido.

Profissão

— Solitário como uma gata. Livre, quero eu dizer.

Da solidão

Pelos mais variados contextos, das conversas privadas aos desabafos do Instagram (hoje em dia, uma coisa parece poder esgotar-se na outra), podemos detectar os sinais, ora esparsos, ora contundentes, de uma revelação que nos pode ajudar a definir a crueldade destes dias sem fim: muitos cidadãos reconhecem — e, na maior parte dos casos, celebram — o facto de, através do COVID-19, da pandemia e do confinamento, terem redescoberto uma solidão de que estavam esquecidos. Em alguns casos, há mesmo uma descoberta radical: não sabiam que tal solidão existia, sobretudo que existia para lá do maniqueísmo do medo. Há qualquer coisa de irremediavelmente patético nestes gestos confessionais: do mundo unificado e unívoco em que estávamos "sempre todos juntos" através do infantilismo promovido pelas redes (ditas) sociais, passámos para um arquipélago global de ilhas filosofantes, cada uma delas com o seu solitário habitante. Talvez haja, aqui, alguma forma de redenção. Ou apenas o reconhecimento implícito, porventura involuntário, de que a solidão é mais criativa que a estupidez.

31 de agosto de 2020

Trabalho

Há uma guerra social travada por causa e, de alguma maneira, através do COVID-19. No seu cerne está o impensado do trabalho. Dito de outro modo: abaladas todas as estruturas de trabalho, não há programa social para sustentar de modo tão harmonioso quanto possível a circulação dos valores. Daí a silenciosa ressurreição de um fantasma: cada ser humano deixou de valer pelo trabalho que executa ou pode executar, reduzindo-se ao valor que pode gerar para a "colectividade". Subitamente, Marx renasce numa perturbante actualidade simbólica. Perturbante e, em alguns aspectos, irrisória, já que aqueles que seriam os seus directos herdeiros (coisa discutível, entenda-se) nada têm a dizer sobre o  actual labirinto social do trabalho, investindo numa patética militância. A saber: dirimir com a Direcção Geral de Saúde os números possíveis de visitantes no recinto da Festa do Avante.

30 de agosto de 2020

Avante

A inabilidade política das entidades governamentais em lidar com a Festa do Avante é um reflexo exemplar da dramática dimensão social da pandemia. Num sentido muito preciso: se é possível definir, politicamente, regras socialmente coerentes e consensuais, porquê hesitar quando se está a lidar com um partido político?
Verificamos, assim, que em determinados momentos o Partido Comunista continua a ser tratado como uma vaca sagrada da nossa cultura democrática, como se qualquer medida que afecte a sua lógica ou as suas actividades fosse uma ferida aberta na "democracia", ou até mesmo um insulto ao "povo".
Escusado será dizer que tal tratamento só oferece pretextos a que as forças mais extremistas reforcem as suas argumentações demagógicas, arrogando-se o direito de falar em nome do dito "povo". Seria assim tão complicado ser coerente e, já agora, aplicar a religião do futebol para declarar o óbvio que é também, neste caso, em nome da saúde pública, o mais sensato? A saber: se não há pessoas nos estádios de futebol, também não há Festa do Avante.
Podemos até acreditar que haveria algum militante comunista que, em nome dessa sensatez, viesse publicamente reconhecer a justeza da decisão — em nome do povo, neste caso sem aspas.

29 de agosto de 2020

Instagram & Cª

Depois das trocas íntimas do Facebook, do seu pueril ecumenismo, a proliferação global das contas do Instagram expôs-nos como protagonistas de um novo narcisismo, tanto mais obsceno quanto a sua lei primordial inverte qualquer tradição: já não se trata de defender a minha singularidade, distanciando-me do outro, porventura até menosprezando-o; agora, essa singularidade, mesmo nos seus aspectos mais medíocres, caricaturais ou pornográficos, submete-se voluntariamente ao desgaste provocado pelos olhares infinitos do mundo à sua/nossa volta — o anódino coexiste com o sublime, a ponto de nos levar a admitir que cada um deles se pode converter no outro ou, pelo meno, mascarar-se assumindo a pose do outro.
Daí a proliferação de registos, impossível de descrever ou classificar. Há o fotógrafo de paisagens. E o fotógrafo de grandes planos de si próprio. O Instagram do cão. O Instagram do gato. Milhões de cães. Milhões de gatos. O leitor de poemas. O escritor de poemas. O fotógrafo de poemas. Livros. Revistas. Colecções de fotografias antigas. Colecções de fotografias de lugares antigos. A estrela de cinema como modelo. A estrela de cinema, música ou culinária como arauto de uma qualquer transcendência existencial. A estrela de alguma coisa como militante de uma causa universal. O direito à diferença. Toda a gente é pelo direito à diferença. O filosófo de bolso. O filosófo, sem mais. Muitos cães a tomar a banho, entusiastas. Alguns gatos a tomar banho, relutantes. Livros velhos. Móveis velhos. Móveis novos. A namorada. O namorado. Gastronomia, para principiantes ou especialistas. O planeta reencenado como uma tribo de gastrónomos. Caixinhas de jóias. Janelas. Vinhos. Restaurantes. Jantares de grupos. Grupos que parecem só existir por causa dos jantares que promovem. Nostalgia de Hollywood. Super-heróis sem nostalgia. Jornais com artigos gigantescos. Resumos de artigos gigantescos. Frases em destaques  quadrangulares, susceptíveis de serem lidas no ecrã do telemóvel. Porquinhos a levar beijinhos. Bebés. Mais bebés. Ainda mais bebés. Discursos edificantes de pais e mães, sobretudo de mães, exaltando a pureza dos filhos. Bebés com cães. Bebés com gatos. Museus. Uma menina que parece passar a vida a fotografar-se para o Instagram. A tristeza. O cepticismo. Gritos de alegria. Um caniche da Croácia. Seguido por um chihuahua de Moscovo. As luzes de Moscovo. Os candeeiros de uma aldeia que não vem no mapa. Nudez interdita. Bikinis, quand même...
Subitamente, o Instagram disponibiliza-nos uma nova moral colectiva, afinal velha como o mundo, em forma de resgate das nossas angústias e desilusões: a humanidade faz-se com um pouco de tudo, da beleza radical, tão intensa que fica próximo da dor, até ao horror dos que, decididamente, publicam imagens do mundo como se o mundo coubesse no interior do seu cérebro raquítico. Talvez tudo isto seja uma forma de libertação.

Maquilhagem

Num comentário a uma foto de Cristina Ferreira no seu Instagram, alguém expressa admiração pela "coragem" de se mostrar sem maquilhagem, desse modo "inspirando" todas as mulheres — com o neo-feminismo, Greta Garbo morre todos os dias.

28 de agosto de 2020

Guerra fria

— A minha misantropia colide com a compaixão do meu interlocutor. Odeio-o ainda mais por isso, levando-o a redobrar a atenção com que protege o meu discurso. Somos duas intimidades separadas por uma fronteira inamovível, o que quer dizer que conseguimos estabelecer os códigos de uma nova guerra fria, fundada na admiração que o outro nos suscita.

27 de agosto de 2020

Cenas do futebol em pandemia

Muitos deles usando as máscaras da pandemia, adeptos (?) do Barcelona protestam pela anunciada saída de Lionel Messi. Assim se vive o social dos nossos tempos em rede. Curiosamente, em farsas deste género, nunca ninguém questiona os jogadores que juraram amor eterno aos clubes. O que, enfim, nos remete para uma estúpida aritmética: se o Barcelona tivesse perdido com o Bayern, não por 8-2, mas por 1-0, nada disto aconteceria, ainda que o resultado desportivo (a eliminação nos quartos-de-final da Liga dos Campeões) fosse rigorosamente o mesmo.

Morrer

A notícia da morte de alguém com quem, por alguma razão, profissional ou particular, convivemos chega sempre contaminada por uma perplexidade absurda: como é possível? De facto, há na nossa compaixão um toque de egoísmo que se confunde com um exercício de sobrevivência — com a morte daquela pessoa, que morreu em mim?

26 de agosto de 2020

Normal

De que falamos quando falamos de normalidade?
(A pergunta é sempre revolucionária, o que não significa que a revolução seja necessariamente uma bênção.)

Trânsito

Mistério indecifrável (que os confinamentos da pandemia não alteraram): as informações sobre o trânsito são sempre dadas em função de uma ânsia de "regresso à normalidade". Como se o nosso quotidiano fosse um prodígio de organização e serenidade apenas contrariado, aqui e ali, pelos sobressaltos provocados por alguns automóveis menos disciplinados. Quase sempre também, as vozes que escutamos são femininas, em pose maternal, por certo tentando apaziguar qualquer inquietação que nos possa assaltar. Será esta uma nova forma de feminismo?

25 de agosto de 2020

Informação & política

As notícias do Brasil, com a indiferença pueril de Jair Bolsonaro face à COVID-19, ou dos EUA, com Donald Trump pela mesma via, ao mesmo tempo que tenta minar a logística das eleições, produzem um bizarro efeito de saturação meditática e desgaste moral: aquilo que, tradicionalmente, se apontava a alguns políticos como manobras de bastidores passou a constituir a linha da frente das nossas "sociedades da informação" — foram os políticos que mudaram assim tanto, ou a informação que deixou de pensar o seu lugar social? Seja qual for a resposta, será sempre inquietante.

22 de agosto de 2020

"Cavani não será jogador do Benfica"

Eis um breve conto moral para os tempos do COVID-19. A sua inspiração provém de uma das notícias do dia, disponível, por exemplo, no jornal A Bola:

>>> Cavani exigiu €30 milhões líquidos por três anos de contrato, o que implicaria investimento de €60 milhões brutos para o Benfica, valor incomportável para os ‘cofres’ da SAD. Durante o processo negocial, o irmão e agente do jogador propôs que parte do pagamento fosse feito ‘por fora’, algo prontamente recusado pelas águias.

O leitor lê. Volta a ler. Pára por momentos, reflecte e compreende que deve abrir a janela — só assim poderá escutar os protestos das multidões ruidosas que se indignam quando o governo (qualquer governo) gasta dois tostões, e não três, nas chamadas actividades culturais. O leitor escuta atentamente, não se move, de modo a evitar qualquer ruído que possa perturbar o clamor que aí vem. Escuta e continua a escutar... mas não ouve nada.

21 de agosto de 2020

Da dureza do dinheiro

Cena ao balcão de uma instituição bancária. Um cidadão deposita uma soma que envolve menos de uma dúzia de notas. O funcionário toca as notas uma a uma, não para contar o valor envolvido, mas porque, diz ele, são novas e estão muito duras... Qual a relação disso com o seu trabalho? Acontece que deve passá-las, obrigatoriamente, pela máquina de contagem de notas. Dito de outro modo: a civilização da contabilidade generalizada não confia num ser humano para fazer contas. Efeito prático: o funcionário passa as notas, uma a uma, e vai anotando num papel os respectivos valores.
Em boa verdade, semelhante ritual será, em última instância, justificado pela necessidade de identificar possíveis notas falsas. O que, por ínvios caminhos, vai dar ao mesmo: as contas já nada têm que ver com a singeleza primordial da matemática, passaram a ser um despudorado teatro de máscaras.

20 de agosto de 2020

"Terceira idade"

Há qualquer coisa de insuportavelmente obsceno na escalpelização pública dos efeitos do COVID-19 em alguns lares da terceira idade ("terceira idade"... a própria expressão parece expor-se, agora, na sua ancestral desvergonha). Claro que importa apurar responsabilidades. Mas, uma vez mais, tudo se passa como se só soubéssemos funcionar como colectivo social enquanto promotores e espectadores de julgamentos sumários na praça pública, nomeando culpados que possam arder na fogueira da opinião pública ("opinião pública"... outra designação que passou a encobrir o próprio facto de não termos uma genuína cultura de troca de opiniões, preferindo antes a gritaria mediática). Infelizmente, a conjuntura não parece favorecer uma atitude genuinamente social. Eis uma pergunta possível para começar: que visão humanista, que práticas e políticas do envelhecimento — e para o envelhecimento — existem numa sociedade de permanente celebração de todos os desmandos e irresponsabilidades "juvenis"? Pior um pouco: uma sociedade que, em nome da concorrência e do lucro, associa quase sempre a boa performance profissional apenas aos que ainda não contemplam a hipótese da reforma.

Made in USA

A confluência de uma urgência sanitária — a pandemia — e uma tragédia política — Donald Trump — confere às eleições presidenciais americanas a inusitada dimensão de um teste realmente global. A saber: de que modo é possível, ou não, os modos de difusão de informação do século XXI desmascararem a mediocridade humana do actual Presidente dos EUA? Ou, pelo contrário: até que ponto a própria existência desse Presidente é um produto de tal conjuntura de informação?
No limite mais drástico, e também mais perverso, desta dinâmica deparamos com uma perturbação visceral: a que nasce da possibilidade de o aparato de comunicações em que vivemos ser, não um factor de incremento de hipóteses democráticas, mas um motor de derivas autoritárias.

18 de agosto de 2020

Ensaio

— Ensaio o sonho por vir, sem conseguir confirmá-lo. O certo é que já o sonhei, transformando o período do sono numa derivação perversa do estado de alerta.

Trend

Efeito pandémico: nos últimos anos, nasceu um chique anti-cinéfilo, assistindo-se à proliferação de espectadores que "só vêem séries de televisão"; agora, do cidadão anónimo ao exibidor mais angustiado, toda a gente proclama que a experiência de ver um filme numa sala escura é coisa insubstituível. Que haja críticos de cinema a dizê-lo e escrevê-lo há décadas, eis o que não conta para este campeonato. A vida cultural passou a ser, assim, uma algazarra seduzida pelo seu próprio vazio, enfim, um fenómeno de trends — aliás, dizer trend é chiquérrimo.

17 de agosto de 2020

Cinema & pandemia

Curioso fenómeno do mercado cinematográfico em cenário de pandemia: após várias décadas  [convém sublinhar: décadas] de formatação de um público maioritário orientado apenas [outra vez: apenas] para filmes de super-heróis e afins, alguns responsáveis pelas salas de cinema vêm chorar lágrimas de crocodilo, lembrando o valor insubstituível da experiência de um filme numa sala escura com um grande ecrã. Celebremos, por isso, o ecumenismo católico: até mesmo os crocodilos têm direito a ter razão.

Demasiado tarde

— O habitual anonimato dos rostos que pontuam os sonhos deu lugar ao aparecimento de figuras conhecidas mas, por assim dizer, irreconhecíveis, porque resistentes a qualquer aproximação. O sonho dramatiza-se, então, entre a expectativa de alguma confirmação por parte do interlocutor e a estranheza mais ou menos ameaçadora do seu comportamento. Ao mesmo tempo, a repetição cíclica de microscópicos acontecimentos faz com que, num grito sem som, o sonho me leve a proclamar que estou à beira de acordar. E não acordo. Ou, se acordo, sinto-me invadido pela sensação de que foi demasiado tarde — como num sonho.

16 de agosto de 2020

Mais dinheiro

Há que reconhecer que a persistência do futebol em pandemia envolve uma mensagem de absoluta resistência, com fortes componentes emocionais. Será, talvez, por isso, que nos esquecemos que, das transmissões televisivas aos bilhetes dos estádios, se trata de uma das indústrias mais hábeis a solicitar dinheiro (muito dinheiro) aos cidadãos comuns — os contribuintes, de facto.

"Hijos de p..."

Conhecemos mal o mundo em que vivemos. E tanto pior quanto, desde que se impôs a noção de "rede social" como uma espécie de oráculo cujas mensagens dispensam qualquer distanciamento ou avaliação (as formas de vigilância dos seus desmandos, nomeadamente das "fake news", envolvem o reconhecimento paradoxal de que o contexto em que surgem possui dons imaculados, porventura divinos), todas as actividades humanas estão automaticamente sujeitas a uma vigilância do "colectivo" cuja abrangência e legitimidade nasceriam, precisamente, da sua mera existência como agregador virtual de indivíduos. Consequência: qualquer grupo, por mais minúscula ou boçal que seja a sua existência, pode ser promovido à condição de juiz e tribunal de qualquer evento.
Assim acontece nos espaços de discussão "pública" (em rádio e televisão) e nas caixas de "comentários" dos órgãos de informação: na maior parte dos casos, todas as intervenções, incluindo as mais obscenas, sinistras e irresponsáveis, têm direito à mesma exposição de qualquer ponto de vista realmente complexo e arduamente fundamentado. Por estes dias, em tais espaços, qualquer cidadão surge automaticamente promovido à condição de "especialista" de todas as tragédias do planeta, a começar pelo COVID-19.
Exemplo assustador: o jornal espanhol Marca multiplica textos, especulações e sondagens sobre a derrota do Barcelona frente ao Bayern, "ilustrando" uma das suas peças com um video de 01m 05s em que se vê uma dúzia de "adeptos" (talvez menos...) que, entre outras coisas edificantes, proclamam: "Dad la cara hijos de p... nos meten 8 como si fueramos el Espanyol" (frase pedagogicamente citada na legenda do próprio video).
Assim se faz jornalismo nos nossos dias, para mais num jornal de justificado prestígio histórico, por muitos celebrado como uma referência emblemática no mundo do desporto. É, curiosamente, o mesmo jornal que, em 2013, acusou José Mourinho de ofender a história do Real Madrid e, no limite, a própria dignidade da nação espanhola por colocar Iker Casillas no banco de suplentes, dando a titularidade a Diego López, para depois consumar uma espectacular cambalhota filosófica: quando Mourinho foi substituído por Carlo Ancelotti, e tendo em conta que Casillas continuou a ser... suplente, a Marca teve uma revelação metafísica. A saber: "Diego López faz duvidar Ancelotti".
Decididamente, num tempo de tantos fait divers inócuos e estupidificantes, valeria a pena reflectir sobre o jornalismo, não apenas através de grandes considerações abstractas, não poucas vezes desligadas de qualquer relação pertinente com a realidade profissional, mas também analisando atribulações deontológicas deste teor.

Do pensamento como pandemia

Lentamente, vai-se insinuando uma inquietação em que o emocional e o ideológico coexistem como as duas metades de um rosto. A saber: há um pensamento pandémico sobre a pandemia, cada vez mais forte, mesmo tendo em conta que os números de infectados e falecimentos são muito baixos. O que leva a supor que se consolidou um novo sistema de percepção do mundo — já não se vive, somos apenas contorcionistas da arte de evitar a morte.
O que, enfim, nos devolve uma interrogação tabu: de onde vêm as ideias?

14 de agosto de 2020

Futebol e engenharia

Notícia a ponderar: a contratação de Cavani para o Benfica implica todo um processo de "engenharia financeira"... Talvez ele possa trabalhar em regime de lay-off.

13 de agosto de 2020

Do naturalismo futebolístico

Notícias sobre dinheiros para a saúde pública ou uma qualquer actividade artística vêm quase sempre acompanhadas de perguntas, hesitações ou insinuações sobre a dimensão de gravidade decorrente dos valores gastos ou a gastar. No caso do futebol, referem-se milhões para este, milhões para aquele, com a indiferença de quem está apenas a dar conta de uma coisa natural — até mesmo o novo naturalismo é futebolísico.

Os milhões do futebol

Algures, num dos programas televisivos sobre futebol, um comentador entusiasta (e, honra lhe seja feita, de empenhada sinceridade) avalia as possibilidades de contratação de grandes craques estrangeiros para algumas equipas portuguesas. E os milhões necessários? Pois bem, argumenta ele, é preciso que apareçam porque todos vamos ganhar com isso — e imaginamos os dias radiosos que irão viver o futebol, os adeptos, os clubes, o país e os vendedores de bifanas... Insólito tempo mediático este em que vivemos. Para lá da obscenidade de um discurso deste teor face aos dramas quotidianos decorrentes da pandemia e da hiper-fragilização do mercado de trabalho, não tenhamos dúvidas: se algum intelectual se precipitasse a sugerir algo de semelhante para a área do cinema, ou até mesmo do badminton, estaria a esta hora a ser metodicamente queimado na fogueira dos "tribunais" públicos.
Assim vai o nosso diálogo social.

12 de agosto de 2020

O ar do futebol

>>> "... e seguramente alguns adeptos sabemos que vêm sempre porque querem estar basicamente a respirar o mesmo ar que os seus jogadores nas mesmas cidades..."

Dispensemos as considerações de natureza gramatical. Digamos apenas, para simplificar, que as palavras do secretário de Estado do Desporto, celebrando a realização da Liga dos Campeões em Portugal, não terão sido um primor de felicidade discursiva, acuidade clínica, subtileza social ou pertinência política — seguramente, basicamente.

A-L-I-E-N-S

Toda a nossa "comunicação" passou a estar contaminado por violentas formas de moralismo. Não porque tais formas proponham alguma moral sobre os respectivos conteúdos (para usarmos a palavra consagrada pelas rotinas informativas); antes porque, através de um calculismo anónimo, se organizam para instalar a noção purificadora segundo a qual há uma moral prévia que comanda e legitima tudo aquilo que se "comunica".
Assim, vemos e ouvimos autores de discursos de trágico vazio de pensamento a proclamar, frase sim, frase não, que falam, cantam ou militam em nome do "planeta", das "mulheres", dos "negros" ou do "direito à diferença"... Não dizem três palavras seguidas capazes de gerar qualquer coisa de minimamente consistente, mas estão do lado de uma razão que, no limite mais patético, ignora a sua obscenidade — implicitamente, condenam-nos se nos atrevermos a nomear a sua mediocridade discursiva.
Por estes dias, nos EUA, há mesmo quem tenha descoberto que Aliens: O Recontro Final (1986), segundo episódio da saga "Alien", realizado por James Cameron, é um marco na história do feminismo... Não haveria maneira mais prática, nem mais eficaz, nem sequer mais reaccionária, de anular a complexidade e a urgência dos temas que, supostamente, se convocam.


10 de agosto de 2020

"As ideias do meu corpo"

Há uma nova ideologia da doença a circular. O individualismo pueril ("o meu fígado está muito pior que o teu estômago...") deu lugar a uma consciência mais metódica ou, pelo menos, menos fútil da singularidade de cada doente — mais exactamente: da aventura única, insubstituível, de cada corpo. Não seria exactamente disto que Barthes falava quando formulava a hipótese de seguir as ideias do meu corpo, reconhecendo que "o meu corpo não tem as mesmas ideias que eu". Ou talvez fosse.

8 de agosto de 2020

Bloco-notas *

* de um cidadão anónimo em tempos de pandemia.

— Com a acumulação de semanas em rotinas fechadas, quase sem sair de casa, os sonhos adquiriram o peso, a força e a perturbação de uma realidade alternativa que, a qualquer momento, pode ocupar a realidade a que chamamos primeira. É uma estratégia bélica, montada em paisagens recônditas do meu corpo, em que a noção de ocupação possui qualquer coisa de militar: a consistência da realidade original decompõe-se em infinitos fragmentos sonhados, lineares e verosímeis, mesmo quando assombrados pelos fantasmas de uma inquietação sem origem detectável.

— Os sonhos perderam a unidade de episódios fechados em que, nem que seja por indizível medo, gostamos de detectar algum simbolismo susceptível de apaziguar o nosso medo. O medo já não decorre da ameaça de um desenlance cruel. Em boa verdade, nunca há desenlace, já que tudo começa sem começar, transportando o peso de uma história trágica, conduzida por um narrador  anónimo, sósia de alguém, que resiste a esclarecer o já acontecido.

— Antes de adormercer, já estou dentro do sonho. A certeza dessa condição de absoluta vulnerabilidade provém, não da sinalização do começo do sono, mas da certeza sem forma, translúcida e omnipresente de que o pensamento com que procuro racionalizar o que está a acontecer tem a sua origem no próprio sonho que vai começar.

6 de agosto de 2020

Holograma

No dia a dia, alguns cidadãos caminham pela rua com a máscara segura nas orelhas, mas descida para o queixo. Como uma espécie de holograma simétrico de alguns inacutos tabagistas: "Um maço de cigarros dá-me para dois ou três dias, mas não sou viciado..."

5 de agosto de 2020

Lirismo

A pouco e pouco, as urgências impostas pela pandemia favoreceram a instalação de uma "ideia" política que, em boa verdade, supera as clivagens entre os territórios imaginários e imaginados de direita(s) e esquerda(s). A saber: todas as crises financeiras devem ser, obrigatoriamente e automaticamente, debeladas pelo Estado.
Efeitos práticos de tal lirismo? Como se não bastasse o sofrimento de quase todos, ainda se agravam os seus efeitos com a miragem idílica de um Estado que seria uma espécie de tesouro infindável a funcionar num mundo sem pandemia. Em boa verdade, pensar o que seja um Estado tornou-se, no século XXI, um luxo que a cena política, quase sempre duplicada pela cena mediática, prefere repelir.

3 de agosto de 2020

Intervalo

Fixos os olhos
Azuis gotas suspensas
Na eternidade

3 milhões

Citação do dia: "Jorge Jesus terá todas as condições para fazer o seu trabalho". Fica por esclarecer se o ordenado anual de 3 milhões de euros faz parte dessas condições. Ou não passa de um pormenor sem importância.
Isto partindo do princípio que todos os portugueses têm todas as condições para fazer o seu trabalho — é verdade que esta observação tem o seu quê de demagógico, mas consegue, pelo menos, distanciar-nos da ditadura mediática da liturgia futebolística.

O "social" em "rede"

A indefinição moral do colectivo faz proliferar os discursos individuais moralizantes. É essa, aliás, a impostura visceral da vida em "rede": fazer-nos acreditar que a cacofonia dos indivíduos gera, por anónimo milagre, a consistência do "social".

Humano/desumano

O desafio profissional e ético colocado pela pandemia ao jornalismo é linear. Pode definir-se através de uma dicotomia muito básica: trata-se de promover formas inteligentes de enfrentar a catástrofe ou apenas de, dia após dia, encontrar "culpados" circunstanciais, mais ou menos incautos e indefesos, para mascarar os dramas decorrentes das nossas limitações colectivas?
Ou ainda: trata-se de escolher a dimensão humana ou o espectáculo do desumano?

2 de agosto de 2020

Policial

Cada vez que há uma situação social de violência nos subúrbios, cada vez que há um fogo, cada vez que a estupidez de alguns adeptos do futebol se traduz em agitação mais ou menos violenta, porque é que há sempre alguém que sugere que as forças policiais chegaram "atrasadas"? E porque é que esse alguém, não poucas vezes, é um jornalista? Mesmo vivendo a crueldade colectiva do COVID-19, temos dificuldade em reconhecer que as convulsões que agitam a comunidade estão enraizadas em factores necessariamente complexos, muito para lá de qualquer determinismo redentor de causa e efeito, por vezes enredados nas nossas vidas ao longo de dezenas ou centenas de anos. Como se a chegada da polícia 10 minutos "antes" fosse um factor de milagrosa pacificação das nossas contradições internas. Aliás, explicar tudo pela qualidade do policiamento, por mais necessário e competente que seja, é dar mostras da nossa  frágil identificação com a Lei — não apenas aquilo que está legislado, mas um sistema (escrito e afectivo, material e simbólico) que espelhe um sistema de valores em que todos nos reconhecemos.

Apanhados

Que passa pela cabeça da pessoa que faz uma entrevista não revelando outra preocupação que não seja apanhar o entrevistado em contradição? Que lhe resta de desejo de conhecer o mundo à sua volta? Porque razão, ou em nome de que lei, se coloca na posição de quem representa uma entidade virginal — o jornalismo, precisamente — que se distinguiria pela legitimidade de tratar o seu semelhante como obrigatoriamente suspeito de algum desvio, pecado ou crime?

Tóxico

Tóxico. Toxicidade. Até mesmo as palavras que nos inquietam só adquirem nova vida social através do futebol. Eis a suprema toxicidade futebolística: a de nos encerrar o mundo na sua linguagem, nos limites da sua linguagem. Wittgenstein também começou pelo futebol — mais ou menos.

1 de agosto de 2020

Da liturgia

A nossa dinâmica social define-se através da conjugação de três entidades enredadas numa indizível perversidade (indizível porque, precisamente, interdita às práticas discursivas mais ou menos colectivas): primeiro, reagimos a qualquer facto que contenha ou atraia a noção de catástrofe; depois, rapidamente reduzimos as nossas dores à urgência de nomear um ou vários culpados; enfim, acreditamos, ou construímos um aparato mental que nos leva a acreditar que acreditamos, que a agitação que somos capazes de gerar com as duas fases anteriores nos conduzirá a alguma forma de redenção, porventura de purificação.
Percalços discursivos dos políticos, acidentes de comboio ou guerras entre "famosos" — tudo serve para alimentar esse tríptico imaginário em que, de facto, julgamos vislumbrar a lógica de uma arquitectura de relações a que chamamos "sociedade".
Ilustrando e, de algum modo, confirmando o nosso triste viver colectivo, o COVID-19 inscreveu-se nessa dinâmica como entidade rebelde, resistente às nossas patéticas liturgias — temos medo e algo nos diz que não somos dignos do nosso medo.

27 de julho de 2020

Murnau

Oportunidade?
Oportunidade para repensar todas as componentes da nossa existência? Sim, porque não? Começando, por exemplo, por uma exigência de pensamento: pensem que, quando Murnau filmou City Girl, nenhum de vocês tinha nascido. E continuem a pensar.

26 de julho de 2020

Instagram

Provavelmente, daqui a alguns anos, porventura décadas, os historiadores encontrarão nas nossas contas do Instagram alguns dos sinais mais reveladores do modo como, socialmente, encarámos a pandemia — em particular do modo como (não) sabíamos olhar o outro. Os outros.

24 de julho de 2020

Exercício

Tocar o horizonte com a ponta do dedos.
Fechar os olhos e tactear as primeiras nuvens.
Recuperar a frase e os limões que caíram.

23 de julho de 2020

Tautologia

"Numa palavra, Racine é sempre outra coisa que não Racine, e eis o que torna a tautologia raciniana bem ilusória. Compreende-se, pelo menos, o que é que uma tal nulidade na definição traz aos que a agitam gloriosamente: uma espécie de pequena salvação ética, a satisfação de ter militado em favor de uma verdade de Racine, sem ter de assumir nenhum dos riscos que toda a investigação um pouco positiva da verdade fatalmente comporta: a tautologia dispensa de ter ideias, mas, ao mesmo tempo, incha-se ao fazer desta licença uma dura lei moral; daí o seu sucesso: a preguiça é promovida à categoria de rigor. Racine é Racine: admirável segurança do nada."

ROLAND BARTHES
[Tradução de José Augusto Seabra / Edições 70, 1973]

22 de julho de 2020

Análises & projectos

No caso do futebol (e o exemplo do regressado Jorge Jesus é esclarecedor), o dinheiro não é mediaticamente tratado como noutros domínios. Há mesmo um paraíso futebolístico que existe como cenário liberto das tragédias morais & financeiras que assolam as outras actividades humanas. Todos os outros dinheiros são escalpelizados de forma delirante, alimentando a noção de que cada uma dessas actividades se define por um limiar de euros a partir do qual tudo é suspeito — no futebol, as análises limitam-se a especular sobre o peso do dinheiro investido na prossecução de determinados projectos.
Um filme que custe um milhão de euros, eis um investimento que importa discutir... No futebol, quanto mais os milhões crescem, mais se analisam os projectos — até à exaustão de já não se estar a falar de coisa nenhuma.

21 de julho de 2020

Do país

CITAÇÃO: Após o aparato na chegada a Portugal, no aeródromo de Tires, Jorge Jesus rumou a sua casa, na margem sul, onde acedeu falar brevemente aos jornalistas presentes. «Sinto-me bem por voltar ao meu País», disse, apelando ao respeito pela sua privacidade. [A Bola]

Seria possível escrever um enorme dossier sobre estas linhas. Dava para encher várias edições de um só jornal — como esse dossier não se faz, são estas as linhas que se publicam. Ou a cultura mediática como poupança de ideias.

Ninguém

Um, dois, três quatro, cinco, seis... Ou o espectáculo em tempos de pandemia. A saber: vários canais de televisão transmitem em directo a chegada do avião particular em que Jorge Jesus regressa a Lisboa. Eis a lhaneza de uma pergunta possível: porquê esta opção? Não é exactamente uma pergunta sobre critérios de programação. Nem se confunde com uma eventual especulação sobre os investimentos e desinvestimentos de dinheiro com que se faz a televisão em Portugal. É uma pergunta humanista, sobre valores de linguagem e comunicação. Dito de outro modo, é aquilo que ninguém quer enfrentar: uma pergunta cultural.

Sessões de cinema

Há qualquer coisa de surreal nas actuais sessões de cinema. Como se a reconquista do estatuto de espectador envolvesse o mascaramento daquilo que nos confere uma identidade — e uma imagem —, apenas sobrando o assustado fulgor dos olhos. De alguma maneira, os que arriscam estar presentes numa dessas sessões não podem deixar de reconhecer o valor de uma sociabilidade antiga, tão tristemente desvalorizada pela conjugação de dois factores mercantis: a vida em rede ("social") e a promoção dos grandes ajuntamentos colectivos em que o acto de comunicar se confunde com a produção colectiva de ruído (literal e simbólico). Além do mais, redescobrindo o valor de um ecrã que não se desloca, que não se desliga, recebe luz e devolve-a.

17 de julho de 2020

Projectos (cont.)

Bizarra confluência de regressos: no mesmo dia, fica-se a saber que Jorge Jesus e Cristina Ferreira regressam (ao clube de futebol e ao canal televisivo a que já pertenceram). A palavra mágica regressa também: ambos vêm em nome de novos projectos, claro.
Assim funciona o débil imaginário profissional que reconfigurou toda a nossa sociedade. E de que, bem entendido, as personalidades citadas, como outras da mesma galeria de "famosos", são apenas peões sintomáticos, porventura incautos desconhecedores da sua própria vulnerabilidade simbólica. Não está em causa, entenda-se, o mais pequeno grão de legitimidade: é bom saber que vivemos numa democracia que, com maiores ou menores desequilíbrios internos, cria condições para que este tipo de movimentações possa acontecer. Mas não é fácil esquecer que, quase sempre, todos estes sobressaltos acontecem também "por amor à camisola", visando uma relação de trabalho vocacionada para uma gloriosa "eternidade"... São camisolas a mais. E eternidades muito mal cronometradas.

Projectos

Afinal, parece que Jorge Jesus não vem ganhar 7 milhões de euros... Há quem diga 3, há quem dia 4... Em boa verdade, esta arbitrariedade é irrelevante, já que mascara o essencial. A saber: a pandemia deixou de ser notícia. Vem um homem do Brasil para Portugal e, no plano mediático, as considerações filosóficas sobre a sua identidade e o seu destino sobrepõem-se a todas as atribulações que possam estar a afectar o planeta. Ah, ponto importante: como em qualquer retórica político-económica, ficamos a saber que a sua vocação transcendental o define como próximo protagonista de um projecto. O mundo passou mesmo a dividir-se entre a aristocracia dos projectos e a plebe dos que não têm qualquer ideia para projectar — seja como for, seguramente, os segundos andam a ser muito mal pagos.

16 de julho de 2020

Sangue

Com pandemia, sem pandemia, descobrimos os adeptos/comentadores do futebol empenhados na mesma guerra de palavras, tão radical e fracturante que não exclui — antes exacerba — a afirmação do sangue como verdade primordial do seu clubismo. Queremos revoltar-nos contra o seu pueril maniqueísmo, mas a tristeza prevalece. Acolhemo-los piedosamente.

Do futebol como norma social

Será o futebol a única religião que nos resta? Que aconteceu para que a mobilização social — com todas as suas ramificações mediáticas — se confunda cada vez mais com as alegrias e tristezas dos adeptos oficiais do futebol?
A simples formulação de tais perguntas coloca-nos numa posição associal. Entenda-se: exterior aos valores sociais dominantes — porque há valores dominantes e valores dominados.

15 de julho de 2020

Fealdade

Compelidos a olhar (ainda) mais vezes para os ecrãs de televisão, há cenários, guarda-roupa, poses e discursos que nos levam a perguntar: porquê tanta fealdade?
No limite, podemos até supor que há muitas emissões para as quais, no interior da própria máquina televisiva, ninguém olha, ninguém sabe, ninguém quer saber. Há mesmo esse exemplo (regular) dos jogos de futebol em que os jogadores usam equipamentos muito semelhantes, dificultando a identificação de uma e outra equipa... O exemplo envolve uma reveladora sintomatologia: os jogos são vistos por audiências gigantescas (por vezes, centenas de milhões de espectadores), movimentam numerosas e complexas estruturas (dos clubes às equipas técnicas de transmissão, passando pelos poderosos estrategas de marketing) e não há uma pessoa — bastaria uma pessoa — capaz de colocar a mais básica questão de comunicação: será que, nos seus ecrãs, os espectadores vão conseguir distinguir os jogadores das duas equipas?

14 de julho de 2020

Nada

Do nada, surgiu uma ideia, uma ideia capaz de enfrentar o nada. Percorreu a ideia, deparando com o nada. Concluiu: não há nada como pensar.

A linguagem dominante

Sempre que acontece um golo bizarro num jogo de futebol (e é quase sempre), surge uma alma inquieta para nos alertar que tudo aquilo aconteceu "contra a corrente do jogo", rejeitando o valor do acaso e o sabor da imprevisibilidade que, por definição, caracterizam qualquer jogo. Por estes dias, especialistas de todos os quadrantes (a ponto de, perante a proliferação de actividades especializadas, o ser humano comum não passar de um incidente incómodo) garantem-nos que a pandemia é uma "oportunidade". De quê? Para quê? São assim os oráculos da nossa miséria filosófica — da caricatura patética passaram à condição de linguagem dominante.

13 de julho de 2020

Cientificamente

Definitivamente, há uma dimensão da política que se transferiu para o discurso científico. A reconfiguração do imaginário social que assim se consagra é tanto mais desconcertante, porventura assustadora, quanto não conseguimos decifrar, objectivamente, o que está a acontecer — isto partindo do princípio que o aparato discursivo da ciência visa algum tipo de objectividade.
Não é tanto a política e, em particular, a gestão da urgência motivada pela saúde colectiva que passaram para o controle da classe científica; é essa classe que parece existir, apresentar-se ou ser representada como uma entidade enraizada num espaço/tempo apolítico e, no limite, associal — os seus elementos seriam representantes de uma nova legitimidade face à colectividade.
Que legitimidade? A de quem, em nome da ciência, trabalha para o bem colectivo — trabalho essencial, entenda-se. Acontece que, ao mesmo tempo, deste modo, explicitamente ou não, o bem colectivo deixa de ser resultado do movimento multifacetado dos indivíduos e grupos, das diferenças cognitivas e respectivas tensões culturais, para passar a ser conceptualizado como algo que pode ser cientificamente fundamentado e, mais do que isso, aplicado. Na prática, estão em jogo os pressupostos de uma nova religião, talvez de um totalitarismo emocional, que nos leva a encarar o corpo, não como uma entidade viva, antes um avatar assombrado pela hipótese universal e omnipresente da doença — diz-me de que doença padeces, di-te-ei quem és.

12 de julho de 2020

Sonho / verdade

Talvez que o sonho seja apenas a verdade descarnada, liberta da ganga daquilo a que damos o nome de real. Talvez que o real possa ser mais consistente, ou menos impossível, se pensarmos que a sua ordem, a existir, será sempre onírica. Pensar isto coloca-nos fora da comunicação televisiva.

"Futebol é cultura"

Eis um grande lema político: "Futebol é cultura".
Não para legitimar a mediocridade de comportamentos e a boçalidade de pensamentos que muitas formas sociais de viver (e promover) o futebol impuseram na nossa sociedade. Antes para perguntar como e porquê nos movemos num espaço cultural — entenda-se: um sistema de valores colectivos — todos os dias dominado e asfixiado pela omnipresença do futebol em todos os recantos da vida social.
Onde está um partido político com a serenidade de abrir essa reflexão? Resposta: não está, não há, não vai haver.

Vozes

Nada a fazer: por mais que o voluntarismo endémico da "comunicação" resista a tal reconhecimento, cada voz transporta uma ideia dupla — sobre o que diz e faz, sobre o que serão os seus receptores. Assim, no mapa mediático das vozes encontramos esse fenómeno, cada vez mais generalizado, que se sente na televisão, mas talvez ainda mais na rádio. Chamemos-lhe hierarquização autoritária das consciências. Assim, há vozes que confundem a noção de serviço (público, como se costuma dizer) com uma grosseira infantilização do destinatário. Será que os produtores de tais sonoridades julgam que já não há adultos na sala?

Regresso ao paraíso

Diz o comentador, em pose involuntariamente nonchalant: caso o anjo da guarda regresse, a equipa terá de readaptar-se à filosofia de Jorge Jesus... Isto depois de, en passant, se ter referido que há pontos a esclarecer, incluindo esse detalhe de somenos que será o salário anual de 7 milhões de euros.
Assim vai o nosso paraíso futebolístico: qualquer tostão que se gaste em produzir filmes suscita sempre as cruzadas moralizantes dos que, ofendidos, denunciam a utilização torpe do dinheiro dos contribuintes. Que um treinador de futebol ganhe num dia o equivalente a 30 salários mínimos mensais pagos na gloriosa República Portuguesa, eis o que é vivido, propalado e eticamente legitimado como um curioso detalhe aritmético...
Claro que a questão não é apenas essa, mesmo se qualquer opção de política cultural se define, antes do mais, como opção financeira. Mas, nem que seja pelo gosto abstracto da matemática, fiquemo-nos por aí, isto é, pelos números.
Valeria a pena perguntar: quem paga as quotas dos sócios e os lugares dos estádios — lugares que podem custar 40 ou 50 vezes mais que um bilhete de cinema?
E já agora: quem paga as assinaturas dos canais que trasmitem jogos de futebol?
E ainda, porque não: quem consome os produtos que os clubes promovem nos estádios e nas camisolas dos jogadores?
Perante tão cândidas perguntas, será que alguém vai reabrir o debate e perguntar como é que o salário de Jorge Jesus — em boa verdade, da maior parte dos treinadores de futebol — provém ou não provém dos bolsos dos "contribuintes"?

11 de julho de 2020

Sonhar não é fácil

Os sonhos transformaram-se. Correspondendo às tensões deste tempo de enquistamento, de algum modo ilustrando-as, expondo-as enquanto imagens efémeras, mas de assustadora intensidade, os sonhos já não são um teatro de equívocos ou, de acordo com as lições do avô Freud, a realização mais ou menos mascarada de um desejo. Ele gostaria, por certo, de conhecer o novo onirismo. Dir-se-ia que o desejo acedeu ao seu fantasma mais radical, ou melhor, à sua identidade fantasmática. A saber: a representação literal do seu impossível objecto. Sonhar tornou-se, assim, a aventura angustiante de conhecer e reconhecer a insensatez social do próprio desejo, a ponto de o desejo de acordar contaminar as peripécias do próprio sonho com uma asfixiante sensação de urgência. Mais do que isso: experimentando, por instantes, o medo como algo de que não se regressa.

10 de julho de 2020

Online

As novas famílias: sentados no sofá, pais e filhos contemplam e actualizam as suas presenças online; por vezes, enviam mensagens uns para os outros. As ligações são globais, as solidões regionais — não há mapas que permitam ver uma coisa ou outra.

8 de julho de 2020

Da indiferença

A indiferença de muitos cidadãos — jovens, sem dúvida, mas em boa verdade das mais diversas faixas etárias — face às regras de protecção contra o COVID-19 recoloca no seio do tecido social um impasse filosófico a dois tempos. Primeiro: será que há neles o niilismo de quem encara a tragédia como inelutável, superior a qualquer gesto individual ou dispositivo colectivo? Segundo: serão alheios a qualquer pensamento sobre a vulnerabilidade da vida humana, a sua e a dos outros? Seja qual for a resposta, é difícil não pensar que o respectivo enunciado integra germes de algum tipo de totalitarismo.

OMS / Coca-Cola

Uma voz diz, algures, num programa de rádio: "O orçamento anual da Organização Mundial de Saúde é mais pequeno que o orçamento anual de marketing da Coca-Cola." Quantas vezes ouviremos estas palavras na paisagem mediática? Mais ou menos vezes do que a amostragem do lance de penalty que ficou por marcar no último jogo do *****?
E se começássemos a formular tais perguntas, que mudaria no mundo à nossa volta?

7 de julho de 2020

Estúpidos

Jovens etilizados, amontoados nas ruas de Albufeira, sem máscaras nem qualquer tipo de distanciamento, dão conta da sua alegre obscenidade perante as sempre disponíveis câmaras de televisão: "... somos jovens, estamos apenas a divertir-nos." Como é que os adultos permitiram a normalização de tanta estupidez? É tempo de perguntar: de que falamos quando falamos de juventude?

6 de julho de 2020

Rosto

Retiro a máscara de luz.
Ofereço-te a escuridão do rosto.
Aceita o silêncio.

Lei e ordem

Porque é que se fala tanto de futebol em televisão? Na verdade, a pergunta não será tão pertinente quanto a saturação futebolística pode fazer supor. Vale a pena abreviá-la: porque é que se fala tanto em televisão?
Espectadores e actores deste estado de coisas, somos todos cúmplices. Ou ainda: que aconteceu, que lei mediática, que ordem discursiva se impuseram a todos nós, a ponto de a avalanche de palavras se ter transformado num tecido de infinitas redundâncias que, no limite, favorece uma violenta surdez cognitiva?
O fenómeno está longe de ser meramente televisivo. Ou mesmo especificamente radiofónico. Há nele uma dimensão social tanto mais desgastante quanto a proliferação de "vozes", até à confusão total, é um dos princípios de funcionamento das chamadas redes sociais. De acordo com a sua lógica, a sociabilidade não passa mesmo do privilégio pueril de podermos "existir" num qualquer circuito de links, likes e outros modos de reduzir o mundo a uma selva de algoritmos. Descobrir que o pensamento matemático (enfim, algumas formas desse pensamento) se transformou numa visceral força política, eis um reconhecimento assustador.

5 de julho de 2020

Etilismo

"É claríssimo que quem vai a um bar e bebe demais não vai respeitar a distância de mais de um metro recomendada." Na sua objectividade, as palavras de John Apter, presidente da Federação de Polícia britânica, têm qualquer coisa de involuntariamente caricatural: reflectem a incapacidade de lidar com a cultura do álcool, tão universal quanto pueril, todos os dias legitimada pelo niilismo libertário deste século. Ou ainda: na imensa paisagem social que se desenha entre o radicalismo anti-tabagista e o liberalismo etílico, deixou de haver pensamento político.

Lactose

A situação de confinamento aumentou o consumo de filmes online, hélas! O que não quer dizer que haja qualquer tipo de incremento na afirmação de valores cinéfilos. Entenda-se: no sentido de compreender e valorizar os filmes como objectos específicos, ligados a uma história, um património, uma mitologia e uma simbologia. Nada disso: as plataformas de streaming organizam as suas listas de novidades como um catálogo de supermercado. Há, por certo, coisas magníficas no meio daquela confusão de adjectivos e patéticas descrições, mas ninguém se preocupa com a nossa dieta. O cinema passou a ser tratado com o cuidado cénico dos armários frios onde estão expostos os iogurtes — nesse caso, pelo menos, podemos distinguir os que têm dos que não têm lactose.

Paraíso, inferno

A presença diária de Graça Freitas e Marta Temido nos nossos ecrãs decorre de uma admirável dedicação humana. Infelizmente, quanto mais os dias se prolongam, mais as suas imagens ficam expostas ao desgaste cruel gerado pelo nosso mundo mediático. E não vale a pena esperar que os repórteres irresponsáveis ponham fim às perguntas desonestas e provocatórias — a pandemia é o seu paraíso, o nosso inferno.

4 de julho de 2020

Suleiman

Alguma indiferença jornalística face à estreia do filme de Elia Suleiman, O Paraíso, Provavelmente, parece decorrer do incómodo associado às suas narrativas. E não necessariamente porque o jornalista se sinta compelido a ceder ao maniqueísmo cognitivo do "pró ou contra". Para lá das tragédias e do sangue que, há décadas, pontuam a coexistência Israel/Palestina, Suleiman enuncia uma verdade muito básica com a qual não é fácil lidar, sendo ele, obviamente, o primeiro a confrontar-se com a sua densidade material e também a perturbação simbólica que acarreta. A saber: como existir — e, sobretudo, como filmar — quando se pertence a um povo e não se tem um país? Perversa convulsão da história: como se o ancestral assombramento judaico se tivesse transferido para a existência contemporânea da Palestina.
Para a aceleração jornalística que faz lei, arrastando mesmo os que tentam resistir-lhe, Suleiman (o seu trabalho, entenda-se) repele qualquer classificação de fronteira, derivada ou não da linguagem da pandemia: não é possível aquietá-lo num rótulo mediático, não sabemos se está infectado ou não. Há nele qualquer coisa da neutralidade ambígua de um assintomático — e isso a preguiça jornalística não tolera.

3 de julho de 2020

Pós-quarentena

Novas imagens do futuro. Aliás, do presente em demanda do futuro. Ou do presente, do imperioso presente, que resistimos a identificar como futuro perversamente actualizado. A saber: o New York Times publica imagens de ruas em movimento, até certo ponto idênticas às das chamadas câmaras de vigilância, mas transfiguradas em mapas de temperatura, e com uma informação surreal: "Num mundo pós-quarentena, as imagens de infra-vermelhos poderão tornar-se uma parte da nossa vida quotidiana. Uma grande parte." E se é verdade que o visual nos pode remeter para o imaginário de alguma ficção científica, não é menos verdade que as cores densas, estranhamente sensuais, geradas pelas câmaras pertencem a um novo realismo: deixamos de ser figurantes de uma paisagem social, passando a existir como manchas térmicas. Os corpos, os seus fluidos e todos os sobressaltos da pulsão romântica passam a existir sob o signo de uma incurável suspeita.

2 de julho de 2020

Obituários

A escrita de obituários é uma profissão cruel. E pedagógica. Quem escreve é levado a compreender que, ao dar a conhecer o perfil de alguém, em boa verdade não conhece ninguém. Entretanto, o objecto da sua demanda morreu.

Métrica

O meu amor por ti é maior que a Lua.
Já não entraram no carro.
Era mais seguro ir a pé.

1 de julho de 2020

As novas interpretações dos sonhos

Dir-se-ia que o futebol é a única via de acesso que temos para falar e, de algum modo, valorizar palavras como:
— sofrimento
— justiça
— coração & cabeça.
Com essa particularidade pueril que faz com que, mais de 100 anos depois de Freud ter produzido os seus primeiros escritos (mesmo a primeira edição de A Interpretação dos Sonhos é de 1900), continua a haver um imenso território mediático — e, nessa medida, público — que consagra a existência humana como algo que pode ser descrito atravé de uma oposição maniqueísta entre "sentir" e "pensar". Mais ainda: garantindo que "pensar-com-a-cabeça" nos coloca (em todo o caso, coloca os jogadores de futebol) do lado de uma imaculada razão, enquanto "sentir-com-o-coração" nos empurra para o erro (pelo menos, quando se joga futebol). Eis a nova educação das massas, mais intelectual nas suas matrizes de exposição e comunicação do que todas as diatribes com que, por tradição, se acusam os intelectuais.

NOTA — A par do surto de COVID-19, há cada vez mais comentadores de jogos de futebol que ignoram o sentido da palavra veleidade, usando-a como se fosse sinónimo de hipótese ou cedência: "A defesa não dá veleidades aos atacantes..."; o que justifica uma dedução a dois tempos: quem emite já não ouve o que é emitido, ou também não conhece a palavra.

30 de junho de 2020

Virose

Novo vírus: o autocarro do Benfica circula por vários canais televisivos — em apoteótico directo, confirmando que os autocarros das equipas de futebol se tornaram uma pandemia mediática (aliás, convém precisar: os autocarros das únicas três equipas de futebol que existem no país).
Entretanto, será que alguém está a estudar uma vacina?
Em todo o caso, ficamos a saber do drama profundo que pode alterar de forma radical a história da nação: à espera do veículo, uma dezena e meia de adeptos manifestam a sua indignação. Há mesmo duas palavras que foram apropriadas pelo mundo do futebol, só aí adquirindo a sua incontestável pertinência social: sofrimento e indignação, respectivamente de jogadores e adeptos.

29 de junho de 2020

A coisa

Mais de 10 milhões de infectados em todo o planeta. A crueza abstracta dos números, incontornável e indispensável, arrasta também um efeito paralisante — dir-se-ia que a sobrevivência se transfigurou num trabalho para contrariar a contundência da estatística. Como baixar os números sem alienar a dimensão humana da coisa?

28 de junho de 2020

Política e medicina

Dois limites realmente drásticos parecem definir o quadro realista e simbólico em que estamos a viver a pandemia: de um lado, sobretudo com Donald Trump, parece não ser possível ir mais longe na consagração de uma irresponsabilidade que, antes de ser inevitavelmente política, é tragicamente humana; do outro, a instauração de um discurso global, globalmente vigilante, dir-se-ia panóptico, de alertas médicos leva a perguntar se a política não estará a ser co-optada e subsumida pela medicina. Resta saber se uma coisa e outra se alimentam e reforçam, nem que seja através de formas perversas de coabitação mediática.

Efeitos secundários

A naturalidade sem mácula, por vezes em forma de anódino e autoritário naturalismo, passou a ser uma espécie de efeito secundário dos discursos "especializados". Poderemos ser tentados a detectar em tal fenómeno as marcas de narcisismos invulgarmente delirantes, encontrando na exposição mediática, não uma forma de satisfação, mas a patética confirmação da sua identidade imaginária. Em todo o caso, tal fulanização corre o risco de passar ao lado da dimensão mais funda do fenómeno, isto é, do verdadeiro magma ideológico que sustenta a proliferação de "especialistas" — um pouco como a actual miséria fadista que faz com todos, dos mais talentosos aos mais medíocres, ao evocarem o nome "Amália", adquiram uma protecção automática para a consumação dos mais duvidosos projectos artísticos. O que acontece envolve uma contínua, determinista e emocionalmente muito agressiva organização "temática" de todos os domínios da vida social.
Um velho exemplo é esclarecedor: sempre que um filme português tem uma discreta performance comercial (e é quase empre), rapidamente se esquece o filme ("bom" ou "mau", não é isso que está em causa) para se discutir a magna questão do "cinema-português-que-não-tem-público". Uma qualquer super-produção com a marca de Hollywood pode ser um aparatoso desastre comercial, mas ninguém, nunca, lança qualquer discussão da mesma natureza.
Assim, se alguém se suicida, todos os circuitos de (des)informação fazem o elogio do morto para, logo a seguir, lançar os parâmetros compulsivos de uma discussão "alargada" sobre o suicídio. Com uma derivação local: porque é que os portugueses se suicidam?
O "tema" do suicídio é um triste espelho da nossa insensibilidade colectiva. Desde logo, porque já não sabemos aceitar o silêncio com que a memória do próprio suicida nos convoca. Depois, porque nem sequer conseguimos respeitar as trágicas singularidades de cada história pessoal — aquele suicida acaba por ser tratado de modo instrumental, transfigurando-se em pretexto "social" para nos entregarmos à discussão paternalista de todos os suicidas.

27 de junho de 2020

Bruno Lage

Felizmente, o país conseguiu libertar-se dos dramas e medos da pandemia. Mas por um preço cruel. Agora, vivemos acossados pela premência de um problema para o qual não estávamos preparados, mesmo multiplicando planos de assistência e profilaxia. Está em jogo a nossa sobrevivência como entidade histórica e projecto colectivo. A saber: o país sofre por não saber qual será o destino de Bruno Lage. O próprio parece gostar do protagonismo, mas também sofre, hélas!

26 de junho de 2020

Contágio

O seu amor era viral.
Foi acolhido com máscara.
Morreram do contágio.

Festas de contágio

As notícias, nacionais e internacionais, das festas de contágio, promovidas e protagonizadas por gente sem o mais débil resto de consciência social, são um sinal esclarecedor de uma nova regra. Não são, de facto, uma excepção, mas o triunfo de uma sinistra regra. Estranhamente ou não, é uma regra de trágica solidão. A saber: perante a fragilização de todos os modos de definição e afirmação individual no seio de algum colectivo — família, escola, religião —, os novos eremitas da doença tentam compensar o seu desespero com a estupidez delirante das suas festas. Celebram uma miserável utopia que consiste em sentir o bafo dos outros, beber álcool e dar pulos — tudo isso será ampliado pelas inevitáveis imagens televisivas, de outro modo festivas, também perversamente virais.
No limite, nenhum desses patéticos cidadãos em festa reconhece a inscrição da morte na sua trajectória de vida — é bem verdade que a negação da morte habita todas as narrativas de redenção romântica, mas aí a doença era outra.

23 de junho de 2020

Os novos bárbaros

Pandemia? Qual pandemia? A caminho dos 10 milhões de infectados? Who cares?
Reunem-se no meio das ruas, escutam DJs e exibem copos com bebidas — os novos bárbaros, educados pelo (e para o) social em rede não têm qualquer noção, perspectiva ou valor do que seja viver em sociedade. A sua arrogância leva-os a apresentarem-se como arautos de uma estupidez colectiva a que dão o nome de liberdade. Tristeza suprema: acreditam naquilo que dizem.

22 de junho de 2020

Connaît pas

Os ajuntamentos nas ruas de diversas cidades europeias são tristemente reveladores da quebra de um laço clássico: o dos cidadãos com o Estado. As celebrações de um individualismo libertário (bela palavra, agora abastardada) contaminado pelo vale-tudo do novo social — e das suas redes — são a expressão muito directa de um vazio existencial que já nem sequer possui qualquer réstea filosófica de niilismo. Apenas essa estupidez colectivizável segundo a qual o ruído desagradável, literal ou simbólico, que um qualquer possa produzir encontra sempre eco num qualquer colectivo de irresponsáveis.
Importa acrescentar algo de muito objectivo: a estreia de um grande filme (exemplo actual: Da 5 Bloods, de Spike Lee) terá sempre, mas sempre, um milhão de vezes menor cobertura mediática que duas ou três centenas de pessoas aos gritos, de copo na mão, a proclamar que o COVID-19... connaît pas.

20 de junho de 2020

Futebol & Estado

As imagens fotográficas e televisivas pontuaram toda a semana, numa espécie de parasitismo mediático que foi deslizando da surpresa para o choque, passando pela perplexidade: as três principais figuras do Estado português — Presidente da República, Presidente da Assembleia da República e primeiro-ministro — acharam por bem protagonizar um evento de elaborada teatralidade para dar conta da realização em Lisboa da fase final da Liga dos Campeões. Como é possível que em tempos de tantos dramas tão difíceis de enfrentar, o aparelho estatal convoque toda a sua autoridade simbólica para se apresentar como arauto e garante de um evento futebolístico?
Claro que há argumentos de natureza económica e promocional que os políticos sempre aplicam para explicar este seu empenhamento. E convenhamos que, em boa verdade, não parece possível desmentir a justeza dos números eventualmente associados a tais argumentos. Aliás, corrigindo: qualquer discussão nessa base reforça o equívoco segundo o qual tudo se reduz a um misto de tecnocracia e marketing.
Acontece que aquilo que se discute e questiona não são números, mas formas de vida — formas de conceber e encenar a nossa existência de cidadãos portugueses. Ou ainda: porque é que o futebol passou a ser tratado, politicamente tratado, entenda-se, como o palco principal da nossa afirmação enquanto país, da nossa definição enquanto povo? Eis uma pergunta que valeria a pena integrar nos próximos debates dos actos eleitorais.

Filosoficamente

A piedade, afinal, não chega. Ao tom inicial que predominou no espaço mediático — a exaltação espectacular das vítimas da pandemia, por vezes "ampliada" por música — sucede o reconhecimento de um cruel desencanto: combater a doença não é uma derivação bíblica; é, de facto, travar uma inusitada guerra política. Daí o desencanto que passou a circular no social (não nas "redes", mas no sistema de relações que integramos), porventura aconchegando-nos um pouco mais no niilismo da moda: somos incapazes, egoístas e irresponsáveis. Eis a filosofia que seguimos, mesmo quando a queremos negar.

19 de junho de 2020

Living in a box

1. O jornalista que acompanha o jogo de futebol vê a bola ser passada para a direita e diz "a bola foi passada para a direita"... Depois, há um jogador que cai, empurrado por um adversário e ele diz "caiu empurrado por um adversário"... Ouve-se o árbitro a apitar para o final da primeira parte e o jornalista, confirmando que acredita que estamos fechados numa cave sem janelas e sem televisão por cabo, preocupa-se em esclarecer-nos que "ouve-se o apito do árbitro, é o final da primeira parte"...

2. A exposição mediática do COVID-19 passou a ser dominada pelo enquistamento de toda a complexidade do fenómeno numa contabilidade de números — quantos infectados, quantos internados, quantos mortos...

3. George Floyd morre infinitas vezes nas imagens televisivas; é uma espécie de loop trágico que se prolonga para lá de qualquer pertinência informativa.

O efeito de repetição que, hoje em dia, domina todos os espaços informativos, incluindo na rádio, impôs-se como uma forma de ver e, sobretudo, não ver o mundo à nossa volta. Dir-se-ia que aquilo que começou por ser um vício gerado pelas programações sem interrupção — é verdade: houve um tempo em que as televisões fechavam à noite — foi promovido a modelo de (des)conhecimento. A descoberta da notícia anula-se pela sua infinita repetição. Sentimos que a podíamos ter visto e ouvido antes, não precisamos de prestar atenção porque sabemos que a vamos poder ver ou ouvir mais tarde.
A célebre box caseira que todos passámos a possuir, ligada ao televisor, é a materialização disso mesmo. Ou, talvez, o advento de um mundo imaterial: já não há tempo nem duração, apenas um agora sem alma que pode ser sempre "rebobinado" e, por isso mesmo, esquecido em qualquer momento. 

17 de junho de 2020

Golos

Promovidos, todos os dias repromovidos e endeusados com oráculos dos nossos tristes dias, os treinadores de futebol passaram a ser socialmente tratados como uma categoria fenomenológica. De tal modo que a sua omnipresença mediática não se discute, escapa a todas as considerações lógicas ou argumentativas. Um deles explica o mau momento dos seus jogadores através de um conceito capaz de desafiar a mais tímida intenção de pensar. A saber: a sua equipa tem marcado menos golos que as outras... Que aconteceria se um político, um empresário ou um crítico de cinema dissesse um disparate do mesmo teor? Que guerras sociais seriam desencadeadas? Que réus seriam esventrados nos tribunais populares?

16 de junho de 2020

Dignidade & etc.

Eis o social que temos: quando uma equipa de futebol anda a jogar mal, acumula derrotas e desce na classificação... alguém chega para garantir que está tudo a acontecer com imensa dignidade. No pólo oposto, os vencedores, estranhamente, nunca são associados a tal valor — encarnam sempre matrizes de heroísmo mais ou menos nacional ou nacionalizável. Quer isto dizer que a performance profissional passou a existir entre duas utopias de miséria: perder é qualquer coisa que se redime numa espectacular afirmação moral (eventualmente despedindo o treinador, mas nunca ninguém fala da sua dignidade...); ganhar obriga a comunidade a reconhecer nos vencedores um modelo a aplicar em todos os recantos da sociedade.

👍👍👍

Espectadores e não-espectadores

Estranha percepção do cinema, do seu consumo e também da sua identidade. Por um lado, antes da pandemia, a sociedade estava alegremente dominada por uma visão festiva, porventura redentora, das plataformas de streaming. Nos últimos anos, nasceu mesmo um novo modelo de espectador (em boa verdade, trata-se de um não-espectador) que se distingue pela afirmação altiva de que "deixou de ir ao cinema" (o que, supostamente, o colocaria num patamar superior aos que mantêm tal "vício"); por outro lado, agora, a possibilidade de regresso às salas é maioritariamente noticiada — e, por certo, como tal encarada pelo público anónimo — como o retorno a uma pureza ideal, fundadora do próprio acto cinematográfico.
Em qualquer caso, tais contrastes são sintomáticos da metódica desvalorização da cinefilia: passamos o tempo a especular sobre os modos de acesso aos filmes, mas falamos muito pouco sobre eles e pensamo-los ainda menos.
Há dias, numa dessas plataformas, na zona de comentários a um clássico da história do cinema, alguém deixou a indicação de que se trata de uma "seca": a palavra usada é mesmo "secante" — sem mais, a gloriosa arrogância do nada. Quando a democracia acolhe, assim, a ignorância, as pessoas sentem-se felizes e realizadas — e não querem conhecer o que quer que seja.

PS — Além do mais, é incrível que uma entidade comercial — salvo melhor opinião, trata-se mesmo de vender filmes — acolha, assim, tamanha grosseria, nem sequer defendendo o seu produto da mediocridade "social" (convém sublinhar a transformação lexical: hoje em dia, a maior parte dos negociantes de cinema desconhece a palavra "filmes", só falam em "produtos").