10 de setembro de 2020

20,21 € — um conto moral *

Era uma vez um país em pandemia que, a acreditar nas notícias que circulam, possui um sistema bancário que, em anos recentes, conseguiu a proeza de perder (ou alienar, ou desviar, ou colocar em parte incerta...) alguns milhões de euros. Aliás, corrige o narrador: milhares de milhões de euros.
Nesse mesmo país, num dia quente do final do Verão, um cidadão incauto acorda com os sinais sonoros das maravilhas que a tecnologia amistosamente lhe faculta: por SMS e voicemail (as designações anglo-saxónicas são comoventes, a começar pela sigla de simétrica elegância do Short Message Service) recebe a informação cordial de que a sua conta bancária apresenta um saldo negativo.
Não são milhões. Não são milhares. Já agora, observa o narrador surpreendido com as peripécias da narrativa que lhe calhou revelar ao mundo, nem sequer são centenas. Mas não deixa de ser uma revelação chocante, capaz de abalar as estruturas morais da nação: o défice é de nada mais nada menos que 20 euros e 21 cêntimos. 20,21 €: eis o preço que importa pagar para nos salvar do apocalipse.
O banco, delicadamente, solicita o provisionamento da conta. Embora as mensagens não comentem tal hipótese, o cidadão compreende que, através do mesmo método, os milhões desbaratados irão ser recuperados. Por esse mundo fora, cidadãos em dívida como ele, honestos e cumpridores, esbracejam, felizes, a provisionar. Aleluia!
Entretanto, reconhecido, regista a aprendizagem da palavra mágica que, até este dia, não fazia parte do seu mísero léxico: provisionamento. A moral da história é, por isso, de natureza linguística e gramatical. Sibilinamente casta, como se impõe. E nós agradecemos.

* Baseado em factos verídicos.