30 de abril de 2020

Catequese

Predomina o proselitismo de catequese: o apocalipse está prometido, mas há um aparato de impenetrável transcendência que nos vigia e protege. Neste clima socio-mediático (a expressão soa de modo estranho, mas talvez seja o momento de a aplicar), nenhum diálogo pode existir — interpela-se o outro, não para o escutar, antes para que ele confirme, se possível com eloquente abnegação, a triunfal beatitude do discurso com que é confrontado. Olhamos e não vemos. Ou somos levados a não ver.

29 de abril de 2020

Rosto(s)

[McCann]
A ideia de que os olhos são o espelho da alma, ainda que poeticamente irresistível, não deixa de ser socialmente fraca. Sobretudo neste tempo "em rede", em que a proliferação de (auto-)representações dos rostos criou um planetário efeito de banalização — a "minha" imagem apenas encontraria o seu fundamento na possibilidade de se confrontar com a "tua".
Daí essa necessidade, talvez mesmo urgência, de reinventar os rostos, não como banal moeda de troca mediática, adstrita aos valores tendencialmente fúteis do look, antes como mapas de uma história interminável — porque o seu efeito, isto é, as suas leituras prosseguirão sempre para lá da morte do retratado. Em boa verdade, o rosto acolhe a nossa história. E não como espelho (miragem teológica arrastada pelos séculos): o rosto evolui como o mapa paradoxal, transparente, mas de leitura sempre difícil, do que somos, do que imaginamos ser, daquilo que vemos nos outros, do modo como com eles, conscientemente ou não, nos relacionamos.
Quem vê caras não vê corações? Nada disso. Poupemos a obscena recuperação do romantismo folhetinesco. A não ser que queiramos ficar limitados a essa miséria descritiva do futebol segundo a qual equipa que joga mal está sempre a jogar "mais com o coração do que com a cabeça" — não deixa de ser uma maneira divertida de explicar os disparates feitos com os pés. Sem esquecer, claro, que pensamos com o corpo todo.

[1660]

28 de abril de 2020

Os outros

A proliferação de máscaras nas ruas envolve um perverso reforço da individuação. Perverso porque individuar (o verbo tornou-se um objecto excêntrico que tentamos evitar) é expor e, de algum modo, reforçar as componentes individuais. É mais do que individualizar, distinguir no interior de um conjunto, porque arrasta a ideia de que a diferença exposta pode já não pertencer ao conjunto, mesmo que não o renegue. Mascarados, assim, somos devolvidos à nossa solidão primordial, essa a partir da qual podemos reencontrar algum sinal ou, pelo menos, o pressentimento da diferença do outro — da dignidade que nela se materializa e define. Há uma difícil lição social nesta renovada aventura de olhar os outros nas ruas do nosso território: em vez de nos entregarmos ao simulacro de uma comunidade virtual, em que todos são iguais porque todos aceitam banalizar a sua diferença, redescobrimos que a possibilidade do social começa no reconhecimento da primordial estranheza do outro. Sempre cruel, o tempo confronta-nos, assim, com os limites de todos os ecumenismos.

27 de abril de 2020

Desejo

Subitamente, em algumas prelecções públicas sobre a sexualidade vs. COVID-19, surge a palavra desejo. Com a preocupação profilática de recomendar que os indivíduos aconselhados — eu, tu, ele... — se disponham a administrar (?) o seu desejo, garantindo que, quando a sua chama se apaga, o possam reacender algures, em condições mais interessantes. Eis-nos nas catacumbas da nossa gloriosa Sociedade de Aconselhamento. Mais de um século depois dos Três Ensaios de Freud, os sacerdotes do nosso esvaziamento cultural chegam assim, com palavras doces, para nos iniciarem nas atribulações do desejo, aplicando a mesma pedagogia paternalista com que poderiam, talvez, ensinar uma criança a lidar com fósforos. Uma temporada de Buñuel, no mínimo, para limpar as ideias.

Individual e social

Circula pelos espaço mediático a noção piedosa segundo a qual o confinamento favorece uma redescoberta do ser. Eis um sintoma social dos nossos dias, ou melhor, do entendimento dominante do social, logo do individual. Temos tanto medo de tantas formas de solidão que inventamos mais um artifício, em forma de patético resgate moral, para proclamar que o fechamento compulsivo que estamos a viver envolve uma radiosa compensação: vamos redescobrir-nos... Como se só agora, face ao desenho colectivo da morte, tívessemos reparado que estamos vivos.

Retórica

Equação psicanalítica: os sonhos sonhados no confinamento integram a perda de coordenadas que a pandemia instalou nas nossas vidas. Como se cada sonho fosse um mapa efémero, estranhamente acutilante, da nossa ânsia de retomar as medidas de tempo e espaço que conferiam à nossa existência uma frágil ilusão de coerência. Descobrimos, assim, os adereços de um luxo ingrato: o território fechado da casa confunde-se com a vastidão incomensurável de uma galáxia. O infinito é apenas uma figura de retórica.

25 de abril de 2020

Marcelo Rebelo de Sousa

Sintoma: alguém discursa na sessão solene do 25 de Abril, na Assembleia da República; quando termina, vozes radiofónicas e televisivas repetem palavras soltas daquilo que foi dito, cumprindo a (falta de) lógica da mais nefasta pirueta retórica que o jornalismo inventou — o rodapé serve para banalizar tudo o que foi dito, transformando a fluência do discurso em paisagem anárquica de incidentes gramaticais.
O mais penalizado foi, inevitavelmente, Marcelo Rebelo de Sousa. Em poucos minutos, o seu discurso, brilhante e agregador, foi retalhado em resumos, análises e comentários que, em última instância, decorrem de uma missão compulsiva a que o próprio espaço mediático sujeita todas as personagens directa ou indirectamente envolvidas na cena política.
Quando chegar a noite, as palavras do Presidente da República já não existirão como discurso específico. E nada disso tem a ver com o juízo de valor que cada um, legitimamente, possa formular sobre tal discurso. Tais palavras não passarão de um mote, incauto e descartável, para "justificar" o ruído analítico dos outros. Comemorar o 25 de Abril poderia ser também reflectir sobre estes jogos florais da comunicação, não exactamente social, mas em sociedade — poderia ser, mas não é, deixou de ser.

24 de abril de 2020

O espírito do 25 de Abril

Prevalece a noção política e, sobretudo, moral segundo a qual a memória do 25 de Abril permanece operante porque o seu espírito persiste. Moralmente voluntarista, tal crença reduz o labor político à ideia simplista segundo a qual a história se faz de acontecimentos cujos "significados", por anónimas artes mágicas, se cristalizam, repetindo-se, sem rugas nem sobressaltos, de geração em geração.
Promove-se, assim, um comovente esforço, anualmente renovado e renovável, na crença de que a sua legitimação democrática (insubstituível, não é isso que está em causa) transforma o espiritual em moeda comum, reforçando a economia da memória colectiva. A contínua falha de tal esforço justificaria, pelo menos, que alguém colocasse em cima da mesa, não o espírito, mas a matéria do 25 de Abril — alguém que venha do lado da política, entenda-se. Tal como as coisas estão, para muitos, novos e velhos, o 25 de Abril não passará de uma discussão, para mais pouco inspiradora, sobre o modo de organizar as distâncias no hemiciclo de São Bento. Por mais que tal discussão possa ser justificada ou justificável, nada de espiritual a sustenta.

As velhas redes sociais

[24-04-20]
Não, não são as novas redes sociais — são as velhas. Subitamente, num planeta habituado a viver inebriado com o "social" do simpático Sr. Zuckerberg, descobrimos que é preciso regressar aos elementos primordiais da nossa sociabilidade. Regresso difícil, sem dúvida cruel, porventura impossível. A situação era de tal modo trágica que as chamadas de atenção dos ecologistas da comunicação, esses saudosistas do anti-progresso, nunca bastaram para, pelo menos, abrir modestos intervalos de reflexão — foi preciso uma pandemia.

23 de abril de 2020

Livro, livros

Miséria cultural. Da vida do livro, dos livros. Há um tom piedoso, insuportavelmente paternalista, que contamina as compulsivas comemorações (?) em torno do livro. Sem nunca abdicar da suprema ilusão: através das suas manifestações mediáticas, haveria ou haverá mais gente envolvida com os livros... Na verdade, o principal, porventura único, efeito ideológico de tão alegre agitação envolve a redução do livro a um objecto pitoresco que, em nome de uma qualquer compensação lúdica, talvez valha a pena descobrir para preencher esse mitológico lugar de consumo, figura mercantil, por excelência, a que se dá o nome de "lazer". Nesta gloriosa deambulação democrática, somos mesmo convocados para lidar com o consequente domínio conceptual, ou seja, os fascinantes dramas das promoções. Qual o desconto que devo aproveitar? Estas memórias de Primo Levi ou uma antologia das 372 maneiras de confeccionar doces através de receitas biológicas (!), gerindo a suprema ameaça do colesterol? Ou ainda um título tão sugestivo como O Prazer do Texto — são poucas páginas e, pelo título, deve ter a ver com sexo.
Na sua esplendorosa abertura de alternativas, et pour cause, a nossa sociedade não desiste de celebrar, promover, enaltecer o livro, os livros e a sua maravilhosa infinitude. A essa comovente militância falta lidar com a avalanche material e simbólica de uma cultura de "entretenimento" (a degradação da palavra obriga à profilaxia das aspas) que, há décadas, dos jogos de video à reality TV, nos formatou para tudo menos para a relação táctil com os livros, esse humildes rectângulos de papel que acolhem a sensual intermitência das palavras.

Mal acabamos de dizer uma palavra, em qualquer lado, sobre o prazer do texto, há logo dois polícias que estão prontos a cair-nos em cima: o polícia político e o polícia psicanalítico: futilidade e/ou culpabilidade, o prazer ou é ocioso ou vão, é uma ideia de classe ou uma ilusão.

21 de abril de 2020

Igualdade

A percepção social da doença funciona como espelho do grau de consistência do nosso colectivo. Que seja necessário surgirem discursos e desenvolver acções para auxiliar "os mais pobres", eis um sintoma cruel de uma desigualdade que a nossa vontade democrática (ainda) não conseguiu rasurar. Provavelmente, a absoluta igualdade perante a doença é um dos valores mais radicais de qualquer dispositivo democrático.

"Antes" e "depois"

Dir-se-ia que a pandemia é também um programa social e um curso pedagógico. Dos casamentos e divórcios até aos jogos de futebol, instalou-se na gíria social a ideia de que há um "antes" e um "depois" da pandemia de que, de uma maneira ou de outra, sairemos transfigurados. Em boa verdade, trata-se de um pensamento de bizarra teologia, alicerçado na noção de que o devir humano pode ser definido a partir de fronteiras existenciais rigorosamente desenhadas e estanques. Como se tivéssemos recuado a uma conjuntura anterior às atribulações de Hans Castorp, inquieto e fascinado com a resistência do tempo a ser racionalmente definido. Não será por isso que deixaremos de superar a pandemia, mas é duvidoso que tudo isso traga algum suplemento cognitivo à nossa dificuldade de lidar com o medo.

20 de abril de 2020

Let it Be

É assustadora a (des)informação que circula entre os que não viveram, directamente e conscientemente, o dia 25 de Abril de 1974. Reconhecê-lo não tem nada a ver com qualquer noção heróica que seja preciso propalar, nem com, no pólo oposto, a eventual irrisão do evento histórico. Acontece que tudo se passa como se os spots televisivos do Largo do Carmo (sempre as mesmas imagens), pontuados por uma marcha militar (sempre a mesma), tivessem gerado uma rotina de esvaziamento da memória que leva a que tudo, ou quase tudo, seja evocado em função de categorias "políticas" da mais esquemática estupidez. Na pior das hipóteses, muitos dos que têm agora 16 ou 17 anos julgam, ou são levados a julgar, que o facto de, com a mesma idade, termos vivido assombrados pela hipótese de a ditadura política nos enviar para uma guerra em África terá implicado que fôssemos animais amordaçados, sempre fechados numa gruta estéril onde nada acontecia. Não sabem que, por esta altura, há 50 anos, surgia o Let it Be, dos Beatles — e não sabem que nos lembramos como se fosse hoje.

19 de abril de 2020

História(s)

Qual é a polémica em torno das comemorações do 25 de Abril? Uma discussão sobre a aplicação das normas de distanciamento social? Ou um sintoma da fragilidade das matérias simbólicas da nossa história colectiva e da cultura histórica que nelas, e através dela, se exprime?

Beethoven, Chopin & etc.

"I contain multitudes."

"Talk shows"

Os apresentadores de "talk shows" transmitem, agora, uma sensação de imensa tristeza. E não é por falta de talento (ou do carisma que alguns deles possuem). Acontece que a sua matriz televisiva talvez esteja a desaparecer — talvez esteja mesmo a decompor-se a noção, afinal drasticamente conservadora, de que fazer televisão implica olhar para a câmara, como se alguém nos estivesse a ver. Vem aí um novo realismo, ou apenas um outro simulacro.

18 de abril de 2020

Que pensar?

Subitamente, ou melhor, lentamente, foi-se instalando no espaço mediático um axioma teleológico: para lá de todos os dramas que o COVID-19 nos faz experimentar, devemos celebrar o facto de a conjuntura nos obrigar a encontrar (?) um pensamento novo cuja utópica capacidade de invenção nos conduzirá a um novo arranjo político, unindo no mesmo milagre redentor o nosso bairro e o planeta inteiro.
Curiosa indigência filosófica: o pensamento não é pensado (a redundância é apenas aparente) como um acto real que transfigura o próprio real de onde emana, surgindo antes definido como um "instrumento" a que recorremos quando o real, esse ingrato, expõe as limitações e tragédias dos nossos modos de viver.
Veja-se o exemplo sintomático dessa impressionante "descoberta" que tem circulado com inusitada alegria: o COVID-19, garantem-nos os especialistas do domínio em causa, vai obrigar a repensar a nossa sexualidade... Há pelo menos duas décadas que o "Big Brother" televisivo e seus derivados instalaram no nosso quotidiano a sinistra noção de que o sexo não passa de uma performance genital engalanada por uma obscenidade tecnocrática disfarçada de romantismo, mas não se viu (quase) ninguém preocupado com a necessidade de um pensamento ágil e ousado da sexualidade, capaz de combater a desvergonha vendida como "formato" televisivo.
Ora, o acto de pensar não depende de uma decisão, também ela tecnocrática, no sentido de corrigir os males do mundo. Há uma anterioridade do pensamento, de uma só vez cultural e política, que faz com que ele (o pensamento) já lá esteja quando, supostamente, o convocamos. Pensar não se estabelece por decreto, como quem programa do zero a construção de uma grande superfície comercial, prevendo as formas de entrada e saída dos utentes (ou das ideias). Estamos, de facto, a pensar quando reconhecemos que a nossa postura não é o grau zero do mundo, antes integra um património imenso de ideias, enunciados e respectivas articulações. Nesta perspectiva, pensar é qualquer coisa que nos coloca no terreno de uma fascinante tensão: a escrita da nossa história é também alguma forma de reescrita da história secular do mundo.
Aliás, voltando ao exemplo anterior, importa ter em conta que aquilo que tem faltado na nossa relação com o "Big Brother" não é um pensamento "sobre" (seja ele qual for): a própria indiferença com que, ilusoriamente, o deixamos fora de qualquer acto de pensar é, afinal, uma poderosíssima forma de pensamento. Ou ainda: nem tudo o que é pensamento está sancionado, organizado e transmitido por uma lógica consciente.


PS - Há outra maneira de dizer isto. Parafraseando o subtítulo de uma série televisiva de Godard, a nossa existência evolui sobre e sob o pensamento — a série chamava-se Seis vezes Dois, e apresentava-se com o subtítulo Sobre e sob a comunicação. Mereceu acusações de pretensiosismo intelectual, dessa forma reforçando-se o pensamento segundo a qual o intelectual não passa da encarnação maligna da pretensão. Ou ainda: a menorização do acto de pensar não nasceu nos nossos dias, uma vez que a série surgiu nos pequenos ecrãs há quase meio século, em 1976.

17 de abril de 2020

Destino

Que está em jogo? O regresso ao trabalho? Ou a reconversão das formas de trabalhar? Para além da questão fulcral da saúde, um dos factores mais perturbantes desta crise decorre do facto de, com ela e através dela, pressentirmos a possibilidade de uma verdadeira revolução social — entenda-se: laboral — sobre a qual não sabemos construir uma qualquer perspectiva política. Porquê? Porque esta é uma revolução liderada pela própria violência da doença, sem vanguardas nem líderes carismáticos.
Vemo-nos, assim, desapossados do próprio conceito de revolução que aprendemos na história. Por vias do Bem ou do Mal (quase sempre do Bem e do Mal), a revolução expressava-se — e, de alguma maneira, acontecia — através da miragem mais ou menos realista de um destino. Agora, o destino, seja ele qual for, escapa-se-nos na areia do tempo.

15 de abril de 2020

La mort

La mort. Terrible mot, n'est-ce pas? Mais c'est étrange, il ne m'impressionne pas tellement aujourd'hui, ce mot. C'était une façon de parler bien conventionnelle, lorsque je disais: «Tu m'effraies». L'idée de la mort ne m'effraie pas. Elle me laisse tranquille. Je n'ai pas pitié — ni de mon bon Joachim ni de moi-même, en entendant qu'il va peut-être mourir.

[Mann]
Mudando de língua, do alemão para o francês, Hans Castorp mantém um diálogo com Clawdia Chauchat em que, subitamente, todas as resistências se afiguram superáveis, todos os indizíveis se apresentam acessíveis à fluidez da palavra. O amor e a morte. E ainda o corpo, terceiro vértice do triângulo cuja forma talvez se confunda com a forma da própria montanha: Le corps, l'amour, la mort, ces trois ne font qu'un.
Mudar de língua, mudar de código, abrir as relações a outras linguagens, eis uma hipótese filosófica — entenda-se: eminentemente prática, como a invenção técnica do apara-lápis que substitui os gestos ancestrais do canivete — que talvez nos ajude a lidar com a pluralidade da vida, seus mistérios e inquietações. É certo que Hans Castorp experimenta tudo isso em cenário de futilidade carnavalesca, mais ou menos etilizado. E convém não esquecer que Clawdia Chauchat não esquece que o lápis que lhe emprestou no começo de tão bizarro pas de deux fica como único saldo palpável do seu breve melodrama (N'oubliez pas de me rendre mon crayon). Seja como for, a deambulação francófona coloca Hans Castorp em contacto com uma verdade, fragmentada e imperfeita, mas não menos verdadeira, que carecia de verbalização.
Lidar com a pandemia não será, seguramente, ceder à proximidade da morte. Resta saber se, para lá do carácter prioritário e insubstituível do labor médico e da gestão política, não nos falta resistir à piedade, essa fraqueza retórica que Hans Castorp não experimenta face à fragilidade do seu querido primo Joachim e, afinal, aos sintomas que o seu próprio corpo vai exibindo.
Escutemos, aqui e agora: temos assistido à instalação da expressão "vai ficar tudo bem" no nosso quotidiano marcado pelo COVID-19; circula como uma espécie de chave mestra do nosso futuro, ilustrando esse triunfo obsceno da piedade sobre todas as formas de pragmatismo. Não necessitamos de começar a dialogar em francês, mas substituir o realismo das relações humanas por uma espécie de xamanismo mediático, eis um Carnaval que talvez não valha a pena festejar. Voilà.

Omnipresença

Tradicionalmente, define-se o jornalismo como a profissão, a arte ou a missão de dar conta da realidade. O que, convenhamos, envolve uma humildade equívoca. O jornalismo é também um sistema de linguagens que, conscientemente ou não, integra e contamina todas as componentes da dita realidade, não poucas vezes transfigurando as suas formas de percepção e verosimilhança. Desde meados da década de 1990, tudo isso passou a ser vivido, e bem ou mal pensado, também através da Internet, prevalecendo a ideia segundo a qual o mundo virtual seria tão só uma reconfiguração técnica do mundo clássico (?) em que vivíamos ou julgávamos viver. Chegados aqui, enfrentamos a mais gelada das evidências: a realidade integra o virtual. Como é que uma profissão, uma arte ou uma missão consegue viver perante tão cruel omnipresença?

13 de abril de 2020

Religiosamente

Notícias, reportagens e comentários (incluindo os comentadores por via digital, essa praga mediática em que todos somos actores e espectadores) garantem-nos que a religião está na linha da frente a lidar com os temas, medos e traumas do COVID-19. Apoteose da banalidade: nada a ver com a singeleza emocional e a energia simbólica do Papa Francisco, sozinho, na Praça de São Pedro, celebrando a energia primitiva da Palavra. Agora, o religioso confunde-se com as rubricas de aconselhamento jurídico ou receitas culinárias, sendo apresentado como uma espécie de mezinha espiritual para lidar com as perplexidades e angústias da pandemia. Os enigmas do sagrado mereciam outra contenção, a começar pela humilde celebração do silêncio.

Pedagogia

Há qualquer coisa de perturbante no facto de, agora, em cenário de pandemia, os políticos surgirem como esforçados pedagogos sociais. Só podemos saudar o seu empenho e o valor inestimável da sua missão. Mas tudo se passa também como se estivessem a reconquistar um estatuto que, com o passar dos anos, deixaram que fosse transferido para as estrelas mediáticas. Como se, enfim, começassem, não apenas a utilizar, mas também a pensar o poder da paisagem televisiva.
Que sociedade vai sair de tudo isto? Aliás, que televisão social pode sair de tudo isto?

11 de abril de 2020

Streaming Global Society

A Sociedade Global do Streaming vai fundamentar-se, não exactamente num princípio de interdição, "não sair à rua", antes numa lógica de enquistamento — "tudo o que pode acontecer, acontece no mundo virtual". Mais do que isso: tudo aquilo que, de alguma maneira, não passar por alguma dimensão virtual será recoberto por uma suspeita ontológica — talvez não tenha acontecido, talvez não possa acontecer...
Em boa verdade, esta transferência tecnológica e simbólica tem estado a acontecer através da proliferação dos mecanismos da chamada Realidade Virtual, não por acaso rapidamente apropriados por duas poderosas indústrias organizadas em torno de uma crença (não instintiva, convém lembrar, mas puramente intelectual) segundo a qual a realidade não passa de um pormenor descartável. A saber: os videojogos e a pornografia. E está por fazer o estudo político da rudimentar ideologia de gratificação & performance que por tais domínios circula.
Na Sociedade do Streaming, os amantes deixarão de ceder ao encanto (ou desencanto, é igual) de partilharem a ferida vital de uma memória segundo a qual "terão sempre Paris". Afinal de contas, Paris, ou qualquer outro nome que remeta para mapas caídos em desuso, não será mais do que uma rede de circuitos virtuais, compulsivamente percorridos através de uma infinidade de variações que poderá até aceitar a observação, ou mesmo a avaliação, de outras personagens virtuais, supostamente humanas. O "Big Brother" televisivo generalizar-se-á como linguagem "neutra", sendo encarado, vivido e recomendado como uma Natureza sem alternativa.
Nessa perda programada de qualquer perspectiva romântica, chegará um momento em que os espectadores de filmes talvez já nem sejam espectadores, na certeza de que aquilo que vão consumir já não corresponderá, para eles, a um qualquer conceito de "filme". Com ou sem a utopia da Cidade Luz, Bergman e Bogart passarão nos seus ecrãs, em fragmentos arbitrários, com a textura dos rostos a preto e branco dinamitada pela sobreposição de mensagens de meia dúzia de palavras ou rabiscos gráficos. O amor será definido apenas pelo caudal de corações coloridos a evoluir na cercadura do ecrã. E os utilizadores reconfortar-se-ão com a sua inequívoca e abrangente liberdade de expressão.

Streaming

O cancelamento de tudo o que seja espectáculo (com) público constitui uma catástrofe para o mercado de trabalho. Mais do que isso: é um sintoma civilizacional. Abre uma ferida cruel, porventura insanável, que, sendo de natureza económica, é acima de tudo visceralmente cultural. E só ficaremos surpreendidos se nos esquecermos que o cultural é a instância em que mais directamente se exprime, edifica e transfigura o económico. Perversamente, tudo isto tende a favorecer a consolidação de uma sociedade em streaming, esse paraíso prometido, promovido e comercializado pelos GAFA (Google + Amazon + Facebook + Apple). Não foram eles que criaram o vírus, claro — evitemos a paranóia das conspirações. O certo é que já tinham inventado a paisagem viral que passámos a encarar como se fôssemos os primeiros habitantes de uma nova ideia de Natureza.

9 de abril de 2020

Antes

A solidariedade não é uma alternativa profilática a que recorremos em situações de crise ou desespero — é antes (literalmente: antes) aquilo que define a comunidade como entidade de todas e para todas as situações. Por cada exaltação gratuita da solidariedade, esquecemos ou banalizamos esse contrato primitivo e a compaixão pelo outro reduz-se a uma forma doentia de piedade.

Polis

E se a nossa identidade passasse a ser definida apenas através de vectores de natureza médica?
Isto porque corremos o risco de sacudir a política, delegar a política na medicina e sobreviver apenas através do discurso clínico.
Será que a nossa salvação tem como preço o esvaziamento de qualquer conceito de polis? Deixamos de pensar o indivíduo com os outros, para o definirmos como aquele que se distancia dos outros?
Ou ainda: a necessidade da distância física deixará como saldo a normalização da distância intelectual? Sem o outro, como vou saber quem sou?
E se eu já não formular essa derradeira pergunta, quem a vai formular por mim?

8 de abril de 2020

Godard

"O vírus é uma comunicação: como aquilo que estamos a tentar fazer... não vamos morrer disso, mas é provável que não consigamos viver bem com isso."

JEAN-LUC GODARD
— com Lionel Baier / ECAL

7 de abril de 2020

As vidas dos outros

Não é um fenómeno destes dias, muito menos um efeito do COVID-19. Em todo o caso, existe como componente social que tende a contaminar todas as actividades humanas, da mais básica informação aos mais variados modos de mobilização dos cidadãos. A saber: que aconteceu para que, em muitas formas de comunicação em sociedade, predominem os mecanismos de infantilização dos destinatários?
Entenda-se: não se trata apenas, talvez nem sequer sobretudo, de um fenómeno da comunicação social, mas precisamente de um aparato de comunicação em sociedade. Como se qualquer interpelação dos outros não implicasse dois vectores discursivos, inevitavelmente interligados, de responsabilidade e responsabilização — responsabilidade e responsabilização daquele, indivíduo ou entidade, que emite uma determinada mensagem; responsabilidade e responsabilização desses outros, mais ou menos conhecidos ou reconhecíveis, que ocupam o lugar mais ou menos consciente de receptores dessa mensagem. Bem pelo contrário, muitas vezes, tal como as coisas funcionam, aquele que transmite — e pode ser a partir dos lugares mais diversos, de uma plataforma mediática ao mercado da publicidade — tende a situar os outros num domínio de compulsiva puerilidade, de alguma maneira esperando, para não dizer exigindo, que esses outros sancionem a postura infantil para que estão a ser convocados.
É por medo que aceitamos tal infantilização? Ou apenas por ignorância dos circuitos de que se faz uma sociedade? Seja como for, escolhamos o medo — é sempre mais criativo que a ignorância.

6 de abril de 2020

Heróis

Qual a fronteira entre o fundamental e civilizado realismo face à situação de pandemia e o apelo ao heroísmo que se associa à identidade nacional? Afinal, em tempos de globalização, outrora eufórica, agora trágica, o que é a identidade nacional? E como é que o heroísmo se aplica no confronto com uma pandemia?

14 segundos

No seu Instagram, X segue 354 outras contas de Instagram. No caso de Y, são 1089. Z revela ainda maior amplitude: 6136 contas estão no seu registo.
Quer isto dizer que, diariamente, para satisfazer o dispositivo associado à sua vida virtual, Z está 14 segundos em cada uma das contas de Instagram que achou por bem seguir. Sem dormir.
Não chega a ser uma utopia pueril. É tão só um patético equívoco existencial.

Criticar

Quando se diz criticar, a regra, com poucas excepções, reduz tal prática ao labor irremediavelmente suspeito de "dizer mal" — e é bem verdade que o aparato mediático em que vivemos trabalha, muitas vezes, para impor tal significação.
Trata-se, afinal, de um velho e muito triste vício intelectual do pensamento popular (sim, com inusitada frequência o popular existe através de enredadas elaborações, genuinamente intelectuais). Perdeu-se a relação com a raiz do verbo, recordada por Jean Laplanche em 1970: "Criticar, no sentido etimológico do termo, é escolher, redistribuir as cartas, 'inventariar' o que foi misturado."

Bom senso

Vivemos o impensável da morte, arrastado pela ânsia humana de salvar vidas. E não estávamos preparados para tanto. Não o poderíamos estar através das vivências da cultura dominante da gratificação imediata, imediatamente repetida, dos nossos circuitos virtuais — um polegar ao alto, "toca-e-foge", algo se há-de seguir, sobretudo algo que nos mantenha nesta espectacular ilusão global de sermos peças e comandos de um motor impossível de parar.
Dirá o bom senso que este não é o momento de pensar isso, uma vez que a salvação das vidas é a prioridade absoluta.
Claro que sim — a vida, a maravilhosa e difícil arte de viver. Mas o que o bom senso assim diz é também que haverá sempre algum desvio, mais ou menos cruel, mais ou menos pueril, para que isso não seja pensado.

4 de abril de 2020

Weekend

Fim de semana. Medida inconsequente do tempo. Não porque a semana não acabe, antes porque, num certo sentido, nada começa nas novas medidas do nosso calendário. O tempo adquire espessura imaterial, instala-se na nossa intimidade, nem lento, nem veloz, como um fantasma cruel, quase doce na sua crueldade. Poderemos, talvez, aplicar-nos a definição da ficção de Godard (na abertura de Fim de Semana, precisamente), apresentando-se como "um filme perdido no cosmos", aliás, "um filme encontrado no ferro velho". Não há nenhuma razão para abdicarmos das razões da nossa cinefilia. Não se morre disso.

Longe da multidão

As imagens dos mais variados lugares emblemáticos de todo o mundo, agora vazios, testemunham uma melancolia ambígua. Como se o simplismo pueril das multidões fosse a primeira utopia que tentamos recuperar.
Sim, é verdade que experimentamos a dor de nos sabermos confinados, longe desses lugares, longe mesmo quando aplicamos as frágeis armas da nossa inquieta imaginação. Ao mesmo tempo, não é menos verdade que, mesmo por eles circulando, tínhamos já cedido à chantagem de definir (e praticar?) o social através de links e seus derivados. Foi assim, aliás, através da brevidade doentia dos tweets, que se elegeu um presidente.
Compreendemos agora que não são apenas as ruas que nos faltam. Para lá da noção primitiva, fascinante, viciada e viciosa, de multidão, falta-nos também um pensamento para a utilização dessas mesmas ruas — longe, aqui tão perto.

3 de abril de 2020

Medidas do tempo

Para além das ameaças muito reais à saúde individual e colectiva, a pandemia possui também esse capacidade perturbante de nos fazer repensar as medidas do tempo. Nesta filosofia compulsiva joga-se também algo do nosso futuro, da sua configuração pública e privada.

2 de abril de 2020

O infinito e a sopa

Virose gramatical, anterior à pandemia, agravada por estes dias: da classe política ao mundo jornalístico, falar mal português funciona, por vezes, como garbosa ostentação pública. É mesmo um sinal de pertença a uma mediocridade tendencialmente em rede ("social", por certo).
Poderíamos recordar o exemplo, sintomático entre todos, da institucionalização, por alguns comentadores desportivos, de um novo significado para a palavra "veleidade", aplicada como equivalente de "hipótese": "a defesa não dá veleidades aos atacantes adversários..."
Mas a obscenidade perfeita está na espectacular proliferação dos verbos no infinito.
Mea culpa. Nada a ver, entenda-se, com os erros de palavras e frases que todos cometemos na comunicação quotidiana com os outros — que venha o falante que possa atirar a primeira pedra aos seus semelhantes...
Acontece que a consagração do erro adquire, por vezes, a força perversa de moda social e, no limite, comportamento compulsivo. Roland Barthes lembrava-nos, justamente, que a interdição do dizer não esgota a história da censura — há também uma censura que "obriga a dizer".
Escutamos, assim, o repórter que já não sabe informar que "o fogo alastra...", optando antes por proclamar: "dizer que o fogo alastra...". Ou o deputado, esquerdas e direitas candidamente unidas, que já não recorda que "sempre defendemos uma lei...", esclarecendo antes: "lembrar que sempre defendemos uma lei..."
A persistência de tais disparates revela a fraqueza, para não dizer a inexistência, de genuínos e saudáveis mecanismos hierárquicos. Na prática, dos responsáveis editoriais aos dirigentes políticos, há quem já não se empenhe em manter, ou saber manter, aquele laço vital de qualquer comunidade humana que faz com que a coerência da própria comunidade se sobreponha aos inevitáveis e compreensíveis erros dos indivíduos que a integram.
O desregulamento dos infinitos reforça-se com o cenário pandémico que estamos forçados a viver — como se tudo acontecesse num tempo sem passado nem futuro, um presente que teima em preservar a sua terrível imobilidade.
A doença é propícia a tal vertigem. Thomas Mann situa mesmo o seu Hans Castorp num "presente imóvel ou de eternidade", decorrente do exame clínico que confirma o seu precário estado de saúde. De tal modo que até mesmo os rituais da alimentação adquirem o assombramento de um destino cruel, porque sem outro movimento que não sejam a repetição dos mesmos movimentos: "Trazem-te a sopa à hora do almoço, como a trouxeram ontem e a trarão amanhã. E no mesmo instante aflora-te um sopro, que vem não sabes de onde nem porquê: és invadido por uma vertigem, enquanto a sopa se aproxima de ti, e as formas do tempo perdem-se, e o que se te revela como verdadeira forma do ser é um presente fixo, no qual eternamente te trazem a sopa."
Seria, talvez, inevitável. Isto porque o desenvolvimento dos meios de comunicação criou, em todos os domínios do conhecimento, uma nova estirpe de "especialistas": a sua prioridade analítica (ou, pelo menos, aquela para que são convocados) já não tem a ver com as especificidades do seu domínio, visando antes a obliteração de qualquer inquietação presente através da divina "antecipação" do futuro. No limite, perante o silêncio embevecido de um plateia virtual, o comentador de futebol vem proclamar que estamos perante um "derby" em que "qualquer das equipas pode ganhar..." Mais do que isso, resgatando-nos da nossa ignorância plebeia, ajuda-nos a enfrentar o derradeiro enigma: "... mas o empate também pode acontecer."
Agora, intratável, o COVID-19 furta-se ao poder visionário de tais "especialistas", a ponto de um médico serenamente realista e pragmático poder ser encarado como presença suspeita no mapa das nossas incertezas. Dito de outro modo: o COVID-19 amplia, e amplifica, o medo inerente à identidade humana.
A persistente aplicação dos infinitos por personagens do nosso tecido social instalou-se, assim, como um sinal subconsciente, ou apenas pueril, do medo de lidar com tudo aquilo que se afigura, e configura, para lá do presente em que, em sentido figurado ou literal, nos sentimos imobilizados. Talvez por isso, todos os dias os responsáveis estatais são confrontados com perguntas, das mais pertinentes às banalmente provocatórias, sobre o futuro que nos podem anunciar — como se o Estado fosse o casto detentor dos poderes metafísicos de uma gramática diferente da nossa.

"Jornalismo"

Com todos os seus dramas, urgências e ansiedades, a pandemia não veio apenas confirmar que os chamados meios de comunicação são vitais na vida que vivemos, melhor ou pior, neste século XXI. Em boa verdade, ela veio expor um facto, também ele vital, que não é fácil de encarar: os referidos meios de comunicação não são apenas elementos de conhecimento, mais fiável ou menos fiável, da nossa vida; também para o melhor e para o pior, eles existem como elementos interno e intrínsecos da própria vida — do que somos, do que vemos, do que fazemos, do modo como pensamos aquilo que somos, vemos e fazemos.
Aqui e agora, as circunstâncias drásticas que vivemos fazem com que, compreensivelmente, não esteja na agenda de ninguém a reflexão sobre o que tudo isso significa e, sobretudo, poderá significar no processo de resistência da humanidade a tamanha ameaça viral — e no futuro que desejamos. O certo é que, no plano mais básico da percepção do nosso quotidiano comunicacional, podemos perceber agora, se é que não o tínhamos já percebido, que há formas "jornalísticas" de comunicação que se fundamentam na multiplicação de uma lógica alarmista, instalando e instilando no tecido social permanentes sinais de catástrofes prometidas.
Para tais práticas, o COVID-19 não passa de uma variação sobre as agitações que, anteriormente, podiam provir de qualquer contexto — o alarmismo "jornalístico" face à pandemia equivale-se, assim, ao burburinho suscitado a pretexto de uma gritaria à porta de um estádio de futebol ou de uma altercação conjugal registada na mais remota das aldeias (os exemplos são apenas realistas).
Não se trata, entenda-se, de suscitar qualquer tipo de tribunal, institucional ou popular, para tais meios ditos de comunicação, muito menos de insinuar a possibilidade de medidas censórias. Colocar a questão nesses termos corresponderia, aliás, a reproduzir o perverso sistema ideológico desses mesmos meios, gerando mais uma cadeia de ruído social, idêntica a tantas outras cuja única vocação é reproduzir indefinidamente esse ruído, esvaziando qualquer hipótese de pensamento.
Trata-se apenas de lembrar que a questão está também — sempre esteve — do lado dos leitores/espectadores/consumidores, abrindo novas possibilidades de demarcação aos profissionais da comunicação. No mínimo, tais possibilidades poderão gerar atitudes, gestos e conteúdos que permitam aplicar mais vezes, a mais exemplos, a palavra jornalismo sem ter de recorrer à sanção discursiva das aspas.

1 de abril de 2020

Miles

Estamos a viver também uma virose discursiva: não há forma social de diálogo, intervenção ou administração que não esteja obrigada a integrar o COVID-19 como factor dominante. É bem provável que não seja possível de outra maneira, de tal modo a urgência da nossa saúde colectiva se afigura tão evidente, premente e angustiante. Ainda assim, a pergunta paira: vamos perder a vocação ancestral e artesanal, numa palavra, humana de lidar com tudo o resto? Podemos falar do cinquentenário de Bitches Brew ou o nosso pecado compromete o destino do mundo?