23 de abril de 2020

Livro, livros

Miséria cultural. Da vida do livro, dos livros. Há um tom piedoso, insuportavelmente paternalista, que contamina as compulsivas comemorações (?) em torno do livro. Sem nunca abdicar da suprema ilusão: através das suas manifestações mediáticas, haveria ou haverá mais gente envolvida com os livros... Na verdade, o principal, porventura único, efeito ideológico de tão alegre agitação envolve a redução do livro a um objecto pitoresco que, em nome de uma qualquer compensação lúdica, talvez valha a pena descobrir para preencher esse mitológico lugar de consumo, figura mercantil, por excelência, a que se dá o nome de "lazer". Nesta gloriosa deambulação democrática, somos mesmo convocados para lidar com o consequente domínio conceptual, ou seja, os fascinantes dramas das promoções. Qual o desconto que devo aproveitar? Estas memórias de Primo Levi ou uma antologia das 372 maneiras de confeccionar doces através de receitas biológicas (!), gerindo a suprema ameaça do colesterol? Ou ainda um título tão sugestivo como O Prazer do Texto — são poucas páginas e, pelo título, deve ter a ver com sexo.
Na sua esplendorosa abertura de alternativas, et pour cause, a nossa sociedade não desiste de celebrar, promover, enaltecer o livro, os livros e a sua maravilhosa infinitude. A essa comovente militância falta lidar com a avalanche material e simbólica de uma cultura de "entretenimento" (a degradação da palavra obriga à profilaxia das aspas) que, há décadas, dos jogos de video à reality TV, nos formatou para tudo menos para a relação táctil com os livros, esse humildes rectângulos de papel que acolhem a sensual intermitência das palavras.

Mal acabamos de dizer uma palavra, em qualquer lado, sobre o prazer do texto, há logo dois polícias que estão prontos a cair-nos em cima: o polícia político e o polícia psicanalítico: futilidade e/ou culpabilidade, o prazer ou é ocioso ou vão, é uma ideia de classe ou uma ilusão.