Miséria cultural. Da vida do livro, dos livros. Há um tom piedoso, insuportavelmente paternalista, que contamina as compulsivas comemorações (?) em torno do livro. Sem nunca abdicar da suprema ilusão: através das suas manifestações mediáticas, haveria ou haverá mais gente envolvida com os livros... Na verdade, o principal, porventura único, efeito ideológico de tão alegre agitação envolve a redução do livro a um objecto pitoresco que, em nome de uma qualquer compensação lúdica, talvez valha a pena descobrir para preencher esse mitológico lugar de consumo, figura mercantil, por excelência, a que se dá o nome de "lazer". Nesta gloriosa deambulação democrática, somos mesmo convocados para lidar com o consequente domínio conceptual, ou seja, os fascinantes dramas das promoções. Qual o desconto que devo aproveitar? Estas memórias de Primo Levi ou uma antologia das 372 maneiras de confeccionar doces através de receitas biológicas (!), gerindo a suprema ameaça do colesterol? Ou ainda um título tão sugestivo como O Prazer do Texto — são poucas páginas e, pelo título, deve ter a ver com sexo.
Na sua esplendorosa abertura de alternativas, et pour cause, a nossa sociedade não desiste de celebrar, promover, enaltecer o livro, os livros e a sua maravilhosa infinitude. A essa comovente militância falta lidar com a avalanche material e simbólica de uma cultura de "entretenimento" (a degradação da palavra obriga à profilaxia das aspas) que, há décadas, dos jogos de video à reality TV, nos formatou para tudo menos para a relação táctil com os livros, esse humildes rectângulos de papel que acolhem a sensual intermitência das palavras.
Mal acabamos de dizer uma palavra, em qualquer lado, sobre o prazer do texto, há logo dois polícias que estão prontos a cair-nos em cima: o polícia político e o polícia psicanalítico: futilidade e/ou culpabilidade, o prazer ou é ocioso ou vão, é uma ideia de classe ou uma ilusão.