Virose gramatical, anterior à pandemia, agravada por estes dias: da classe política ao mundo jornalístico, falar mal português funciona, por vezes, como garbosa ostentação pública. É mesmo um sinal de pertença a uma mediocridade tendencialmente em rede ("social", por certo).
Poderíamos recordar o exemplo, sintomático entre todos, da institucionalização, por alguns comentadores desportivos, de um novo significado para a palavra "veleidade", aplicada como equivalente de "hipótese": "a defesa não dá veleidades aos atacantes adversários..."
Mas a obscenidade perfeita está na espectacular proliferação dos verbos no infinito.
Mea culpa. Nada a ver, entenda-se, com os erros de palavras e frases que todos cometemos na comunicação quotidiana com os outros — que venha o falante que possa atirar a primeira pedra aos seus semelhantes...
Acontece que a consagração do erro adquire, por vezes, a força perversa de moda social e, no limite, comportamento compulsivo. Roland Barthes lembrava-nos, justamente, que a interdição do dizer não esgota a história da censura — há também uma censura que "obriga a dizer".
Escutamos, assim, o repórter que já não sabe informar que "o fogo alastra...", optando antes por proclamar: "dizer que o fogo alastra...". Ou o deputado, esquerdas e direitas candidamente unidas, que já não recorda que "sempre defendemos uma lei...", esclarecendo antes: "lembrar que sempre defendemos uma lei..."
A persistência de tais disparates revela a fraqueza, para não dizer a inexistência, de genuínos e saudáveis mecanismos hierárquicos. Na prática, dos responsáveis editoriais aos dirigentes políticos, há quem já não se empenhe em manter, ou saber manter, aquele laço vital de qualquer comunidade humana que faz com que a coerência da própria comunidade se sobreponha aos inevitáveis e compreensíveis erros dos indivíduos que a integram.
Escutamos, assim, o repórter que já não sabe informar que "o fogo alastra...", optando antes por proclamar: "dizer que o fogo alastra...". Ou o deputado, esquerdas e direitas candidamente unidas, que já não recorda que "sempre defendemos uma lei...", esclarecendo antes: "lembrar que sempre defendemos uma lei..."
A persistência de tais disparates revela a fraqueza, para não dizer a inexistência, de genuínos e saudáveis mecanismos hierárquicos. Na prática, dos responsáveis editoriais aos dirigentes políticos, há quem já não se empenhe em manter, ou saber manter, aquele laço vital de qualquer comunidade humana que faz com que a coerência da própria comunidade se sobreponha aos inevitáveis e compreensíveis erros dos indivíduos que a integram.
O desregulamento dos infinitos reforça-se com o cenário pandémico que estamos forçados a viver — como se tudo acontecesse num tempo sem passado nem futuro, um presente que teima em preservar a sua terrível imobilidade.
A doença é propícia a tal vertigem. Thomas Mann situa mesmo o seu Hans Castorp num "presente imóvel ou de eternidade", decorrente do exame clínico que confirma o seu precário estado de saúde. De tal modo que até mesmo os rituais da alimentação adquirem o assombramento de um destino cruel, porque sem outro movimento que não sejam a repetição dos mesmos movimentos: "Trazem-te a sopa à hora do almoço, como a trouxeram ontem e a trarão amanhã. E no mesmo instante aflora-te um sopro, que vem não sabes de onde nem porquê: és invadido por uma vertigem, enquanto a sopa se aproxima de ti, e as formas do tempo perdem-se, e o que se te revela como verdadeira forma do ser é um presente fixo, no qual eternamente te trazem a sopa."
Seria, talvez, inevitável. Isto porque o desenvolvimento dos meios de comunicação criou, em todos os domínios do conhecimento, uma nova estirpe de "especialistas": a sua prioridade analítica (ou, pelo menos, aquela para que são convocados) já não tem a ver com as especificidades do seu domínio, visando antes a obliteração de qualquer inquietação presente através da divina "antecipação" do futuro. No limite, perante o silêncio embevecido de um plateia virtual, o comentador de futebol vem proclamar que estamos perante um "derby" em que "qualquer das equipas pode ganhar..." Mais do que isso, resgatando-nos da nossa ignorância plebeia, ajuda-nos a enfrentar o derradeiro enigma: "... mas o empate também pode acontecer."
Agora, intratável, o COVID-19 furta-se ao poder visionário de tais "especialistas", a ponto de um médico serenamente realista e pragmático poder ser encarado como presença suspeita no mapa das nossas incertezas. Dito de outro modo: o COVID-19 amplia, e amplifica, o medo inerente à identidade humana.
A persistente aplicação dos infinitos por personagens do nosso tecido social instalou-se, assim, como um sinal subconsciente, ou apenas pueril, do medo de lidar com tudo aquilo que se afigura, e configura, para lá do presente em que, em sentido figurado ou literal, nos sentimos imobilizados. Talvez por isso, todos os dias os responsáveis estatais são confrontados com perguntas, das mais pertinentes às banalmente provocatórias, sobre o futuro que nos podem anunciar — como se o Estado fosse o casto detentor dos poderes metafísicos de uma gramática diferente da nossa.