29 de abril de 2020

Rosto(s)

[McCann]
A ideia de que os olhos são o espelho da alma, ainda que poeticamente irresistível, não deixa de ser socialmente fraca. Sobretudo neste tempo "em rede", em que a proliferação de (auto-)representações dos rostos criou um planetário efeito de banalização — a "minha" imagem apenas encontraria o seu fundamento na possibilidade de se confrontar com a "tua".
Daí essa necessidade, talvez mesmo urgência, de reinventar os rostos, não como banal moeda de troca mediática, adstrita aos valores tendencialmente fúteis do look, antes como mapas de uma história interminável — porque o seu efeito, isto é, as suas leituras prosseguirão sempre para lá da morte do retratado. Em boa verdade, o rosto acolhe a nossa história. E não como espelho (miragem teológica arrastada pelos séculos): o rosto evolui como o mapa paradoxal, transparente, mas de leitura sempre difícil, do que somos, do que imaginamos ser, daquilo que vemos nos outros, do modo como com eles, conscientemente ou não, nos relacionamos.
Quem vê caras não vê corações? Nada disso. Poupemos a obscena recuperação do romantismo folhetinesco. A não ser que queiramos ficar limitados a essa miséria descritiva do futebol segundo a qual equipa que joga mal está sempre a jogar "mais com o coração do que com a cabeça" — não deixa de ser uma maneira divertida de explicar os disparates feitos com os pés. Sem esquecer, claro, que pensamos com o corpo todo.

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