18 de abril de 2020

Que pensar?

Subitamente, ou melhor, lentamente, foi-se instalando no espaço mediático um axioma teleológico: para lá de todos os dramas que o COVID-19 nos faz experimentar, devemos celebrar o facto de a conjuntura nos obrigar a encontrar (?) um pensamento novo cuja utópica capacidade de invenção nos conduzirá a um novo arranjo político, unindo no mesmo milagre redentor o nosso bairro e o planeta inteiro.
Curiosa indigência filosófica: o pensamento não é pensado (a redundância é apenas aparente) como um acto real que transfigura o próprio real de onde emana, surgindo antes definido como um "instrumento" a que recorremos quando o real, esse ingrato, expõe as limitações e tragédias dos nossos modos de viver.
Veja-se o exemplo sintomático dessa impressionante "descoberta" que tem circulado com inusitada alegria: o COVID-19, garantem-nos os especialistas do domínio em causa, vai obrigar a repensar a nossa sexualidade... Há pelo menos duas décadas que o "Big Brother" televisivo e seus derivados instalaram no nosso quotidiano a sinistra noção de que o sexo não passa de uma performance genital engalanada por uma obscenidade tecnocrática disfarçada de romantismo, mas não se viu (quase) ninguém preocupado com a necessidade de um pensamento ágil e ousado da sexualidade, capaz de combater a desvergonha vendida como "formato" televisivo.
Ora, o acto de pensar não depende de uma decisão, também ela tecnocrática, no sentido de corrigir os males do mundo. Há uma anterioridade do pensamento, de uma só vez cultural e política, que faz com que ele (o pensamento) já lá esteja quando, supostamente, o convocamos. Pensar não se estabelece por decreto, como quem programa do zero a construção de uma grande superfície comercial, prevendo as formas de entrada e saída dos utentes (ou das ideias). Estamos, de facto, a pensar quando reconhecemos que a nossa postura não é o grau zero do mundo, antes integra um património imenso de ideias, enunciados e respectivas articulações. Nesta perspectiva, pensar é qualquer coisa que nos coloca no terreno de uma fascinante tensão: a escrita da nossa história é também alguma forma de reescrita da história secular do mundo.
Aliás, voltando ao exemplo anterior, importa ter em conta que aquilo que tem faltado na nossa relação com o "Big Brother" não é um pensamento "sobre" (seja ele qual for): a própria indiferença com que, ilusoriamente, o deixamos fora de qualquer acto de pensar é, afinal, uma poderosíssima forma de pensamento. Ou ainda: nem tudo o que é pensamento está sancionado, organizado e transmitido por uma lógica consciente.


PS - Há outra maneira de dizer isto. Parafraseando o subtítulo de uma série televisiva de Godard, a nossa existência evolui sobre e sob o pensamento — a série chamava-se Seis vezes Dois, e apresentava-se com o subtítulo Sobre e sob a comunicação. Mereceu acusações de pretensiosismo intelectual, dessa forma reforçando-se o pensamento segundo a qual o intelectual não passa da encarnação maligna da pretensão. Ou ainda: a menorização do acto de pensar não nasceu nos nossos dias, uma vez que a série surgiu nos pequenos ecrãs há quase meio século, em 1976.