17 de setembro de 2020

Depois de Noé

O COVID-19 trouxe uma revalorização ou, mais exactamente, uma proliferação da palavra "natureza". Desde logo, porque por muitos discursos passou a circular a noção bélica (apetece dizer: administrativa) segundo a qual a natureza funciona como uma entidade que, ciclicamente, obedecendo às determinações racionais de um qualquer comité imaginário, uma espécie de resto simbólico da Arca de Noé, reage aos desmandos dos humanos, vingando-se com pandemias, tornados e outras contundentes atribulações. Como complemento, proliferam também as militâncias, das cientificamente elaboradas até às derivações "espirituais" dos restos requentados de uma New Age mais ou menos intemporal, que proclamam a necessidade, mais do que isso, a urgência de os mesmos humanos assumirem modelos de comportamento que, para lá da defesa dos elementos naturais, funcionem como redescoberta e revalorização da nossa dimensão natural — dos políticos mais sensatos à mais desavergonhada publicidade, tudo isso circula no quotidiano como uma nuvem virtual (mais uma...) cuja chuva abençoada recebemos com alegria ou desencanto.
Como é óbvio para toda a gente (Donald Trump insiste em cultivar-se como excepção), nada disso é estranho aos dramas que assolam as paisagens, cidades incluídas, do nosso querido planeta. E só mesmo por ignorância, estupidez ou cinismo, porventura através da conjugação dessas três duvidosas qualidades, será possível negar que, da delapidação da riqueza dos oceanos ao ar que respiramos, a humanidade enfrenta problemas que estão longe de se resolver apenas através da separação do lixo caseiro em recipientes de três cores.
Acontece que tudo isto tende a funcionar como se, de facto, a n-a-t-u-r-e-z-a existisse como uma espécie de vinheta bíblica, automaticamente reconhecível e identificável na sua verdade primordial (divina, por certo). A sua pureza pervertida pela nossa irresponsabilidade colectiva seria, ou será, reposta através de ambiciosos programas de defesa do ambiente, pontuados por concertos de boa vontade em que os símbolos da música clássica e os embaixadores do pimba se cruzam em duvidoso ecumenismo.
O mais difícil — e tanto mais quanto, socialmente, passámos a menosprezar tal hipótese — será reconhecer que não há dois lados mecanicamente divididos, um dos quais seria a "natureza", o outro a vida "social". Historicamente, sabemos que qualquer sociedade se faz também através de uma determinada visão dos elementos a que chamamos naturais. Dito de outro modo: a natureza é o primeiro índice da nossa cultura.
Como cidadãos responsáveis, podemos comprar o novo automóvel 100% eléctrico, amigo do ambiente — o certo é que tanto não basta para que a gata que está aqui a dormir deixe de ser um enigma desafiante.