29 de setembro de 2020

Ciência & política

Através das pressões práticas e existenciais da pandemia, a política viu-se compelida a reencontrar uma divisão ontológica que nasceu, afinal, de um sentimento de culpa do sistema de valores da democracia. A saber: é preciso fazer política acolhendo a ciência como entidade que serve a comunidade sem envolver considerações políticas. Tal purificação das origens acontece num contexto em que, cada vez mais, os discursos provenientes da área científica envolvem derivações políticas — nem que seja através da avaliação, positiva ou negativa, do investimento do Estado nas estruturas da Saúde.
Através do incómodo que tudo isso gera, ficamos a perceber que o idealismo democrático se foi dispensando de qualquer reflexão sistemática sobre as convulsões do espaço científico, como se a investigação do mundo existisse como uma espécie de duplo clínico desse outro continente imaculado que seria a natureza — enfim, como se a ciência fosse uma coisa natural e não um permanente labor de enunciação crítica do próprio conceito de natureza.
Provavelmente, tal tensão não pode produzir qualquer equilíbrio definitivo — a instabilidade conceptual é mesmo o seu inevitável modo de existência. Mas é algo desconcertante que muitos dos seus protagonistas — políticos e cientistas — se comportem como se pertencessem a uma agência de serviços que, de vez em quando, recorre ao know how do parceiro do lado.