* de um cidadão anónimo em tempos de pandemia.
— Com a acumulação de semanas em rotinas fechadas, quase sem sair de casa, os sonhos adquiriram o peso, a força e a perturbação de uma realidade alternativa que, a qualquer momento, pode ocupar a realidade a que chamamos primeira. É uma estratégia bélica, montada em paisagens recônditas do meu corpo, em que a noção de ocupação possui qualquer coisa de militar: a consistência da realidade original decompõe-se em infinitos fragmentos sonhados, lineares e verosímeis, mesmo quando assombrados pelos fantasmas de uma inquietação sem origem detectável.
— Os sonhos perderam a unidade de episódios fechados em que, nem que seja por indizível medo, gostamos de detectar algum simbolismo susceptível de apaziguar o nosso medo. O medo já não decorre da ameaça de um desenlance cruel. Em boa verdade, nunca há desenlace, já que tudo começa sem começar, transportando o peso de uma história trágica, conduzida por um narrador anónimo, sósia de alguém, que resiste a esclarecer o já acontecido.
— Antes de adormercer, já estou dentro do sonho. A certeza dessa condição de absoluta vulnerabilidade provém, não da sinalização do começo do sono, mas da certeza sem forma, translúcida e omnipresente de que o pensamento com que procuro racionalizar o que está a acontecer tem a sua origem no próprio sonho que vai começar.