19 de junho de 2020

Living in a box

1. O jornalista que acompanha o jogo de futebol vê a bola ser passada para a direita e diz "a bola foi passada para a direita"... Depois, há um jogador que cai, empurrado por um adversário e ele diz "caiu empurrado por um adversário"... Ouve-se o árbitro a apitar para o final da primeira parte e o jornalista, confirmando que acredita que estamos fechados numa cave sem janelas e sem televisão por cabo, preocupa-se em esclarecer-nos que "ouve-se o apito do árbitro, é o final da primeira parte"...

2. A exposição mediática do COVID-19 passou a ser dominada pelo enquistamento de toda a complexidade do fenómeno numa contabilidade de números — quantos infectados, quantos internados, quantos mortos...

3. George Floyd morre infinitas vezes nas imagens televisivas; é uma espécie de loop trágico que se prolonga para lá de qualquer pertinência informativa.

O efeito de repetição que, hoje em dia, domina todos os espaços informativos, incluindo na rádio, impôs-se como uma forma de ver e, sobretudo, não ver o mundo à nossa volta. Dir-se-ia que aquilo que começou por ser um vício gerado pelas programações sem interrupção — é verdade: houve um tempo em que as televisões fechavam à noite — foi promovido a modelo de (des)conhecimento. A descoberta da notícia anula-se pela sua infinita repetição. Sentimos que a podíamos ter visto e ouvido antes, não precisamos de prestar atenção porque sabemos que a vamos poder ver ou ouvir mais tarde.
A célebre box caseira que todos passámos a possuir, ligada ao televisor, é a materialização disso mesmo. Ou, talvez, o advento de um mundo imaterial: já não há tempo nem duração, apenas um agora sem alma que pode ser sempre "rebobinado" e, por isso mesmo, esquecido em qualquer momento.