8 de junho de 2020

62.984.828

Com o agravamento da situação social nos EUA, proliferam as análises, os discursos e as paródias anti-Trump. Ainda bem. O misto de grosseria, demagogia e provocação que o 45º Presidente da grande nação americana "normalizou" na cena política gera uma inquietação que, sendo também política, envolve o futuro moral e cultural de todo um país.
O certo é que, para lá das muitas nuances de análises, discursos e paródias prevalece uma fixação mecanicista na definição do próprio objecto de tanta reflexão. Assim, conscientemente ou não, a maior parte das intervenções depende de uma interrogação unilateral: que fazer para contrariar o efeito-Trump? Ou seja: como derrotar Donald Trump nas próximas eleições?
Dir-se-ia que este é apenas um prolongamento discursivo do que, ao longo de 2016, aconteceu nos mais diversos contextos mediáticos (incluindo muitos dos mais sérios e exigentes). Nessa altura, quanto mais disparatada ou ofensiva fosse cada intervenção pública de Trump, mais e maior eco noticioso encontrava — como se os democratas acreditassem que a mera "informação" possui a virtude de desmontar e desmacarar os líderes populistas. Agora, o falhanço de tão ingénuo liberalismo ecoa na ânsia com que se relança ad infinitum uma espécie de oração profilática, certamente habitada por riquíssimas formas de pensamento, desejando que "algo" impeça a sua reeleição.
Não é apenas unilateral esta saga de muitos e comoventes desesperos. É também unívoca, consumando, afinal, a vontade primordial de Trump: apresentar-se e ser visto como protagonista de uma peça a cuja representação todos os outros actores faltaram — À Espera de Godot em monólogo, esquizofrénico e, por isso mesmo, triunfante.
Quase ninguém desce à terra da artitmética, lembrando a base de apoio de Trump. Voltar a lamentar o facto de, a 8 de Novembro de 2016, Hillary Clinton ter obtido quase mais 3 milhões de votos que o seu adversário não passa de um choro piedoso, porventura consolador.
A regra do jogo é clara: o Presidente é eleito pelos votos do colégio eleitoral, não pela soma dos votos individuais que recebe. Dito de outro modo: quase ninguém parece querer enfrentar a mais objectiva das realidades. A saber: 62.984.828 pessoas votaram em Trump. Enfrentar a tacanhez de pensamento de Donald Trump é relativamente fácil; lidar com o que pensam, desejam e imaginam mais de 62 milhões de americanos será um projecto político de radical dificuldade. Joe Biden é apenas um nome respeitável, um concorrente sério e uma calorosa personalidade — não é esse projecto.