16 de junho de 2020

Espectadores e não-espectadores

Estranha percepção do cinema, do seu consumo e também da sua identidade. Por um lado, antes da pandemia, a sociedade estava alegremente dominada por uma visão festiva, porventura redentora, das plataformas de streaming. Nos últimos anos, nasceu mesmo um novo modelo de espectador (em boa verdade, trata-se de um não-espectador) que se distingue pela afirmação altiva de que "deixou de ir ao cinema" (o que, supostamente, o colocaria num patamar superior aos que mantêm tal "vício"); por outro lado, agora, a possibilidade de regresso às salas é maioritariamente noticiada — e, por certo, como tal encarada pelo público anónimo — como o retorno a uma pureza ideal, fundadora do próprio acto cinematográfico.
Em qualquer caso, tais contrastes são sintomáticos da metódica desvalorização da cinefilia: passamos o tempo a especular sobre os modos de acesso aos filmes, mas falamos muito pouco sobre eles e pensamo-los ainda menos.
Há dias, numa dessas plataformas, na zona de comentários a um clássico da história do cinema, alguém deixou a indicação de que se trata de uma "seca": a palavra usada é mesmo "secante" — sem mais, a gloriosa arrogância do nada. Quando a democracia acolhe, assim, a ignorância, as pessoas sentem-se felizes e realizadas — e não querem conhecer o que quer que seja.

PS — Além do mais, é incrível que uma entidade comercial — salvo melhor opinião, trata-se mesmo de vender filmes — acolha, assim, tamanha grosseria, nem sequer defendendo o seu produto da mediocridade "social" (convém sublinhar a transformação lexical: hoje em dia, a maior parte dos negociantes de cinema desconhece a palavra "filmes", só falam em "produtos").