Definitivamente, há uma dimensão da política que se transferiu para o discurso científico. A reconfiguração do imaginário social que assim se consagra é tanto mais desconcertante, porventura assustadora, quanto não conseguimos decifrar, objectivamente, o que está a acontecer — isto partindo do princípio que o aparato discursivo da ciência visa algum tipo de objectividade.
Não é tanto a política e, em particular, a gestão da urgência motivada pela saúde colectiva que passaram para o controle da classe científica; é essa classe que parece existir, apresentar-se ou ser representada como uma entidade enraizada num espaço/tempo apolítico e, no limite, associal — os seus elementos seriam representantes de uma nova legitimidade face à colectividade.
Que legitimidade? A de quem, em nome da ciência, trabalha para o bem colectivo — trabalho essencial, entenda-se. Acontece que, ao mesmo tempo, deste modo, explicitamente ou não, o bem colectivo deixa de ser resultado do movimento multifacetado dos indivíduos e grupos, das diferenças cognitivas e respectivas tensões culturais, para passar a ser conceptualizado como algo que pode ser cientificamente fundamentado e, mais do que isso, aplicado. Na prática, estão em jogo os pressupostos de uma nova religião, talvez de um totalitarismo emocional, que nos leva a encarar o corpo, não como uma entidade viva, antes um avatar assombrado pela hipótese universal e omnipresente da doença — diz-me de que doença padeces, di-te-ei quem és.