18 de março de 2020

"Guerra"

O vírus fez com que a palavra "guerra" reentrasse no nosso quotidiano. Em boa verdade, não sabemos o que fazer com ela, sentimo-la como excrescência de uma linguagem que nos incomoda, de tal modo a cultura dominante de festa & juventude nos faz repelir tudo o que remeta para a intratável espessura da história colectiva. A Primeira Guerra Mundial, por exemplo. Para muitos, a sua memória é mesmo um quadro pitoresco sem história, enquanto o segundo conflito mundial não passará de um género cinematográfico ou, pior um pouco, um delírio virtual que o imaginário bélico dos videojogos reproduz através de cenários intermutáveis em que todas as responsabilidades se diluem. Enfim, a Guerra Colonial portuguesa é repelida como um atropelo à imagem redentora e simplista do 25 de Abril como esse dia "mágico" em que, por anónimo decreto, toda a nossa história passada teria sido enterrada — sem mortos, sem guerra.
Agora, a palavra "guerra" diz-se na sua dimensão mais intratável: ainda que nela pressintamos a urgência dos gestos colectivos que o presente nos impõe, aplicá-la é também protagonizar um sobressalto de linguagem que intensifica a nossa solidão.