22 de março de 2020

Tele-Estado

Eis um axioma destes tempos difíceis: o Estado é a televisão, a televisão é o Estado.
Infelizmente, tornou-se quase impossível pensar tal enunciado no interior do espaço profissional do audiovisual e, em particular, através das lógicas dominantes do trabalho jornalístico. Porquê? Porque a profissão, precisamente, reagirá globalmente ofendida, perguntando: "Porque é que a televisão tem sempre a culpa de tudo?" (a pergunta é uma variante dos debates, televisivos, em que alguém suscita a necessidade de pensar os grandes temas sociais sem excluir a televisão, sendo imediatamente aquietado pelo moderador que lembra que "estamos a falar de questões de âmbito social, não de televisão, muito menos de jornalismo").
Ainda assim, retenhamos o sintoma manifestado por quem reage, colocando-se na posição de acusado de alguma "culpa". No plano da argumentação comunicacional, considerar que o Estado é a televisão, a televisão é o Estado, não envolve qualquer atribuição de culpa, muito menos o apelo a qualquer cenário de tribunal. Até certo ponto, é mesmo o reconhecimento de um frágil e bem-vindo mecanismo de compensação, ainda que perverso, gerado pelo enfranquecimento das estruturas e valores do Estado clássico (enfim, do Estado tal como o aprendemos nos bancos da escola): não havendo um sólido sistema estatal de relações entre os cidadãos, a televisão ocupa o lugar desse sistema.
Daí a pergunta didáctica: como é que acontece essa ocupação? Sem centro à vista, importa reconhecer, de modo incerto e arbitrário, para não dizer selvagem.
Dito de outro modo: não se trata de favorecer qualquer noção maquiavélica ou conspirativa, sugerindo que algures, alguém, indivíduo ou grupo, domina, controla e aplica os valores desta reinvenção audiovisual do Estado, manipulando-nos como peões de um xadrez cujo tabuleiro não abarcamos. De forma bem diferente, diferentemente perturbante, o que acontece é que, mesmo em democracia (talvez mesmo sobretudo em democracia), nada do que seja acção estatal consegue existir e, de alguma maneira, ser legitimado sem a sua passagem e contaminação pelas linguagens televisivas.
A conjuntura é tanto mais vulnerável quanto, por princípio, a maior parte dos agentes envolvidos recalca o simples reconhecimento da sua dependência do(s) outro(s): as estruturas televisivas definem-se como oráculos castos de "informação", resistindo a pensar-se como agentes de quotidiana configuração e reconfiguração do espaço social; os poderes políticos tendem a encarar a paisagem televisiva como veículo igualmente casto de intervenção nesse espaço, afinal esgotando a respectiva vocação social na "difusão" das suas próprias mensagens. Que todas as nossas formas de existência — incluindo a pueril entronização dos ídolos do futebol ou a obscena representação da sexualidade nos programas da chamada "reality TV" — sejam definidas (e actuantes) a partir de mensagens televisivas, eis o que nem uns nem outros arriscam enfrentar.
Daí a actualidade destas palavras:

Devemos exigir que se abra, no seio das televisões europeias, um autêntico debate sobre a missão da televisão, sobre as pesquisas a desenvolver para inventar as novas linguagens que, em função de um grande número de sinais, somos levados a pensar que são aguardadas pela sociedade contemporânea. A minha experiência pessoal leva-me a pensar que um tal debate não será possível a não ser no interior das televisões do Estado.

São palavras de um homem que amou (e aplicou) os poderes realistas das imagens e dos sons: Roberto Rossellini. E, em boa verdade, se isso nos pode servir de algum arrevesado conforto, foram escritas num mundo sem COVID-19 — datam de 1972.