16 de março de 2020

Da pureza

O que é, afinal, uma troca social? Ou ainda: sendo qualquer forma humana de existência um regime de trocas, de que nasce e como funciona isso a que chamamos social?
Subitamente, o COVID-19 impõe-nos um social de cruel ambiguidade: para que a sua lógica funcione, isto é, para que resista, é-nos exigido que as trocas comuns, a começar pelas que definem o comércio quotidiano dos alimentos, sejam escassas e austeras e, sobretudo, que não haja trocas físicas: o corpo do outro é, agora, meu inimigo potencial — e tanto mais quanto o mal que nele possa existir vem do interior, da intimidade da respiração, daquilo que o faz ser, afinal, uma entidade biológica igual a mim. E o meu corpo, claro, responde como inimigo do outro.
Quem ousar lembrar as histórias lendárias em que os amantes vivem formas de mútua devoração afectiva, indissociáveis de radicais entregas físicas — de Romeu e Julieta (Shakespeare) a A Idade da Inocência (Wharton/Scorsese) —, corre o risco de ser apontado como elemento disruptivo, quer dizer, perigosamente romântico.
A vitória sobre o vírus, por todos ansiada, vai implicando, assim, o reforço de uma reconversão fisiológica (a que o enquadramento simbólico da sexualidade não ficará alheio) em que a codificação dos comportamentos se apresenta inseparável de uma normalização, não da pureza, mas através da pureza.
Isto porque nos tornámos soldados de uma guerra santa contra todas as impurezas. Mesmo no futebol, já tínhamos aprendido a menosprezar as componentes aleatórias de um lance — na maior parte dos casos, um golo passou a explicar-se mesmo pela "falha de marcação" cometida por algum incauto protagonista (e por que será necessário explicar um golo?).
Há um novo imaginário social, paradoxalmente ou não sancionado pelo valor insubstituível da liberdade democrática, que impõe que não falhemos a nossa marcação. A cidadania define-se a partir do gesto de ocupação da "marca" que nos está destinada.