20 de março de 2020

De que falamos
quando falamos de Estado?

"O Estado sou eu" — a frase atribuída a Luís XIV terá sido desmentida pelo próprio quando, nos seus momentos finais, lembrou que, para lá da sua morte, o Estado iria persistir. Em boa verdade, tudo isso ecoa no nosso presente, não como uma lição histórica, ainda que irónica, antes como um desarranjo mitológico cuja ambiguidade, voluntária ou não, passa ao lado da nossa urgência. O mesmo se dirá do triunfalismo leninista, proclamando "o Estado somos nós", mascarando a estreiteza comunitária da sua primeira pessoa do plural.
Recebemos agora a lição mais ingrata, e também mais pedagógica. Iludidos pelo crescimento agressivo do espaço virtual — como é possível que a obscenidade da expressão "rede social" tenha sido acolhida e integrada como uma natureza sem mácula? —, desistimos de pensar o sistema de relações entre o "eu" e o "nós". Seria preciso o pressentimento da morte para atentarmos na sua importância gramatical e social. C'est fait.