30 de setembro de 2020

Egoísmo

— A doença faz-me esquecer que o outro existe: eis a insolência do egoísmo sobre o qual se constrói a teia social — sobre e sob.

Aborrecimento

O infantilismo mediático — no tratamento de espectadores e ouvintes — deixou de ser uma estratégia de mobilização de audiências. Em boa verdade, passou a existir como um valor "natural": tu que me vês e escutas és uma criança que eu identifico, albergo e protejo, evitando que gastes energia a pensar na tua própria condição. Não admira que, tanto em rádio como em televisão, as crianças sejam reduzidas a monstrinhos patetas que importa distrair, salvando-os do aborrecimento. Eis o pesadelo dos sacerdotes mediáticos: que alguém, seguindo-os, se aborreça.

Morrer

— Penso, por vezes, que nenhuma relação que possamos estabelecer, tu e eu, depende de qualquer motivação afectiva, a não ser o dinheiro que entre nós circula ou pode circular. Pergunto-me, por isso, se a minha saúde possui ainda algum valor, ou se o valor que nela possa manifestar-se apenas existe através do dinheiro com que alguém, entidade humana sem rosto, diz suspender a minha morte anunciada. Reconheço-me, assim, como um ser para a morte — a promessa decorre da mais bela e mais radical inteligência, mas a sua história política é assustadora.

29 de setembro de 2020

Ciência & política

Através das pressões práticas e existenciais da pandemia, a política viu-se compelida a reencontrar uma divisão ontológica que nasceu, afinal, de um sentimento de culpa do sistema de valores da democracia. A saber: é preciso fazer política acolhendo a ciência como entidade que serve a comunidade sem envolver considerações políticas. Tal purificação das origens acontece num contexto em que, cada vez mais, os discursos provenientes da área científica envolvem derivações políticas — nem que seja através da avaliação, positiva ou negativa, do investimento do Estado nas estruturas da Saúde.
Através do incómodo que tudo isso gera, ficamos a perceber que o idealismo democrático se foi dispensando de qualquer reflexão sistemática sobre as convulsões do espaço científico, como se a investigação do mundo existisse como uma espécie de duplo clínico desse outro continente imaculado que seria a natureza — enfim, como se a ciência fosse uma coisa natural e não um permanente labor de enunciação crítica do próprio conceito de natureza.
Provavelmente, tal tensão não pode produzir qualquer equilíbrio definitivo — a instabilidade conceptual é mesmo o seu inevitável modo de existência. Mas é algo desconcertante que muitos dos seus protagonistas — políticos e cientistas — se comportem como se pertencessem a uma agência de serviços que, de vez em quando, recorre ao know how do parceiro do lado.

Camilo n'est pas là

As especulações jornalísticas sobre a reconversão dos impulsos amorosos estão marcadas, hélas!, por um pudor que se desconhece, enredado numa pueril dimensão filosófica, inevitavelmente comovente. Isto porque são sempre, malgré tout, divagações sobre relações sexuais, agora assombradas pela nova lei apócrifa — se te toco, posso estar a tocar na tua doença; se o nosso enlace faz com que os limites dos nossos corpos se confundam, a morte que transportamos passa a exprimir-se através de uma microscópica convulsão de trocas e fluidos. O que, em boa verdade, corresponde à morte anunciada de qualquer forma de romantismo, quer dizer, à sua reconversão numa guerra de hormonas. Assim será, mas só mesmo por distracção política ou alheamento moral não nos demos contas das trágicas evidências da pré-pandemia, a começar pela ocupação selvagem do quotidiano social pelos horrores do Big Brother televisivo. Impossível evocar a pulsão romântica como se, numa esquina do tempo, nos tivéssemos acabado de cruzar com Camilo Castelo Branco.

Corpo a corpo

— Autoscopia. Ver o corpo como se estivesse fora do corpo. Deixou de ser alucinação para se impor como regra social, pressuposto de qualquer troca, discurso existencial. Quando eu morrer, não sou eu que morro — di-lo-ei na altura, se não morrer antes.

28 de setembro de 2020

Telefutebol

Ninguém dá por isso, ou talvez ninguém queira lidar com isso, mas o futebol instalou — e, de alguma maneira, instilou — no nosso modo de ver o mundo uma noção determinista do corpo. Aliás, em rigor, trata-se de um efeito específico da conjugação futebol/televisão: o corpo já não existe como entidade que confirma e supera a nossa identidade (porque "não tem as mesmas ideias que eu"), subsistindo apenas como signo parasita de uma verdade que se consagra na identificação dos movimentos "legais" e "ilegais". Entretanto, no "Big Brother", as performances sexuais são tratadas como moeda única de uma bolsa (dita) de valores humanos. São produtos da mesma ideologia.

Bola_mão_futebol

Quando é que é "bola na mão" ou "mão na bola"?
Pelo menos tanto quanto os temas directa ou indirectamente relacionados com a pandemia, da psicologia à economia, a ponderosa questão futebolística da avaliação dos lances em que há contacto entre bola & mão vai alagando o quotidiano com a sua pueril pulsão óptica. Nela se exprime outra força normativa, reveladora da pobreza social a que chegámos — é a pulsão legalista que nos força (ou quer forçar) a entender todas as formas de comportamento como eventos cuja justeza, por vezes justiça, está antecipadamente regulada por algum preceito legalista definido e promovido como essencial para a correção do nosso viver. Viver?

26 de setembro de 2020

Cinema

Pesadelo cognitivo: jovens de todo o mundo, muito sérios na seriedade que lhes assiste, acreditam que basta postarem-se em frente a uma câmara, falando (falando, falando, falando...) sobre um determinado filme para que nós fiquemos com uma espécie de "chave mestra" para a compreensão do referido filme. Dir-se-ia que, por causa do recato que a pandemia impôs, esses jovens são peões de uma miséria intelectual em assustador crescimento, uma verdadeira brigada de multiplicação de ignorância crítica e irresponsabilidade mediática, automaticamente desculpada pela noção de "juventude" — como grupo cujos disparates seriam sintoma de uma verdade natural, comovente e incontestável — induzida pelo social em rede. Não admira que haja cada vez menos pessoas, de todas as gerações, que tenham curiosidade em conhecer o cinema através das suas especificidades. Sim, qualquer melodrama de Vincente Minnelli é, como qualquer telenovela, uma narrativa sobre famílias, casais e amores atribulados — mas quem é que ainda vê a diferença entre uma coisa e outra?

Escola / Estado

As escolas enfrentam uma verdadeira quadratura do círculo: como fazer funcionar aquilo que, para lá da transmissão de conhecimento, não pode deixar de envolver um projecto de socialização, quer dizer, tanto no plano físico como nas estruturas simbólicas, uma efectiva redução das distâncias?
Muitas das reflexões que proliferam cedem à facilidade de transferir para o Estado a total responsabilidade das dificuldades e impasses que todos conhecemos ou, pelo menos, pressentimos. Há qualquer coisa de pueril nessa saga culpabilizante. E não porque, legitimamente, cada um possa considerar as medidas governamentais como "melhores" ou "piores". Antes porque a pandemia fere a própria ideia de Estado. Mais do que isso: qualquer política de transmissão de saber.