9 de maio de 2020

A guerra das linguagens

A cultura. Defender a cultura. Multiplicam-se discursos, reivindicações, abaixo-assinados — é preciso defender a cultura. De tal modo que se torna delicado, potencialmente equívoco, lembrar a necessidade, porventura a urgência, de questionar a própria formulação dessa "defesa da cultura". Porquê? Porque não se trata de levantar dúvidas sobre a seriedade dos que a subscrevem. Trata-se, isso sim, de perguntar como é possível nomear esse objecto mágico a que se dá o nome de cultura como se a sua paisagem se reduzisse à maior ou menor disponibilidade de recursos financeiros (cuja importância não está em causa) para concretizar determinadas actividades, específicas de cada área? Trata-se, em particular, de retomar o voto de Rossellini, formulado há meio século, reconhecendo que não é possível elaborar qualquer ideia cultural — entenda-se: culturalmente operante — se não tivermos em consideração a existência e os muitos poderes inerentes ao espaço televisivo (e, agora, já em tempos pós-rossellinianos, aos circuitos virtuais de imagens e sons). Nada disto envolve qualquer demonização desse espaço televisivo, suficientemente diverso e contrastado, recheado de diferenças e profundas contradições para que dele possamos fazer qualquer descrição unívoca. Acontece que, no cruzamento mais tradicional do "artístico" e do "político", persiste a noção mecânica e voluntarista, nem sequer consistentemente estatal, de que "basta" criar condições materiais para que os objectos culturais se possam fazer. A cultura fica assim reduzida a uma espécie de coutada ideal e idealista em cujos terrenos protegidos só se pode cumprir a vocação artística dos humanos que somos — um pouco como se se quisesse problematizar as tragédias geradas pela poluição do planeta deixando de lado os automóveis porque, além da sua inequívoca e universal utilidade, muitos deles são de uma esplendorosa beleza.


Em boa verdade, o simples reconhecimento de que a cultura é uma realidade clivada, não unificada, muito menos unívoca, talvez nos possa ajudar a enriquecer o pensamento. Por um lado, importa nunca abdicar do princípio humanista que garante a cada um o seu trabalho e a sua dignidade; por outro lado, importa também não ceder a um ecumenismo hipócrita que nos obrigue a considerar que o humanismo, qual programa profilático, funciona como apagador das clivagens culturais.


Muitos protestos ditos culturais não conseguem formular-se através de outra linguagem que não seja, no fundo, a linguagem de raiz capitalista que, ironicamente, é contestada pela esmagadora maioria deles. A saber: "invista-se" para que haja "produção". Como se fosse possível ignorar que não há linguagem culturalmente unificadora, desde logo no plano financeiro. Como nos lembrou Barthes (contemporâneo de Rossellini, helás!), a vida cultural define-se a partir de uma incessante, talvez interminável, guerra das linguagens. Com muito ou pouco dinheiro, o cultural está sempre dividido sobre si próprio. No limite, importa instaurar uma nova geometria de conjuntos — não há cultura, mas culturas.