19 de maio de 2020

Os mortos não morrem
para satisfazer a piedade dos vivos

Fenómeno recorrente, típico da miséria "social" que contamina as nossas comunicações virtuais: no dia a dia, as caixas de comentários dos órgãos de informação, para já não falar das trocas em "rede", estão cheias de imprecações e insultos que pervertem a própria missão jornalística (o facto de a maior parte desses órgãos de informação acolherem tais desmandos é um tema que valeria a pena recolocar nas nossas reflexões políticas); o certo é que quando morre alguém com alguma dimensão pública, os comentários mudam abruptamente de tom e assistimos a uma maré de declarações piedosas que, provavelmente, confortam as incertezas dos vivos — como se os mortos morressem para garantir e reforçar o valor corrente da piedade.
Serão as mesmas pessoas que, sem problemas de consciência ou achaques da alma, deslizam da grosseria para a catequese? Impossível esclarecer tal dúvida que, ainda assim, não deixa de ser sugestiva. O certo é que o fenómeno se impôs como norma forte da paisagem virtual, por vezes gerando situações absurdas e, no limite, ofensivas — recorde-se o que aconteceu no momento do falecimento de Manoel de Oliveira: depois de décadas de difamação, muitas vezes protagonizada por cidadãos que faziam gala em dar conta do seu glorioso desconhecimento dos filmes do cineasta, a sua morte conferiu-lhe instantânea santificação "social".

>>> Quand il faudra fermer le livre ce sera sans regretter rien.
J'ai vu tant de gens si mal vivre et tant de gens mourir si bien.

LOUIS ARAGON
[ Godard ]