21 de maio de 2020

Sacrifícios

Há qualquer coisa de incómodo no discurso segundo o qual "vamos sair melhores desta pandemia"... Desde logo porque nele se baralham, puerilmente, a sugestão política ("vamos ser melhores a organizar a nossa vida") e a purificação moralista ("vamos substituir o mal belo bem"). Mas sobretudo porque se trata de um discurso banalmente determinista, próximo do aparato teleológico que ocupou muitas zonas das programações televisivas: "vamos ser bondosos para o bem de todos". Como se existisse um sistema de causalidade social em que, quais atletas de alta competição, cada um vai encontrando a forma perfeita através dos sacrifícios mais ou menos castigadores dos treinos, desse modo reforçando a consistência redentora da comunidade. Vivemos, aliás, numa sociedade sacrificial em que as dores individuais são tratadas, exponenciadas e consagradas como ritual de acesso aos destinos colectivos — cultivamos a piedade como mezinha social, desse modo esquivando-nos ao difícil labor de conhecer e, por fim, reforçando o desconhecimento do outro.