A certeza de que qualquer corpo pode estar infectado apaga as diferenças entre os corpos. Como se cada um de nós não passasse de uma derivação orgânica de um corpo imenso, dir-se-ia social e anónimo (ou emblemático de um novo anonimato social), que dispensa qualquer tipo de atenção às singularidades individuais. No plano simbólico, o efeito deste estado de coisas pode ser muito mais duradouro do que a própria pandemia: o valor de viver em comunidade já não se desenha como um imenso puzzle de muitas peças diferentes porque, no limite, a comunidade se define pelos números que sustentam a contabilidade de infectados, recuperados e falecidos. É uma árdua maneira de reaprender a nitidez indizível da morte. E talvez também uma ferida insanável no desejo de viver.