21 de maio de 2020

Hiroshima

As imagens iniciais de Hiroshima, Meu Amor (1959) adquiriram, agora, a vibração sublime, quase obscena, de uma utopia: os amantes nus, enlaçados, desfazendo-se no seu calor, pertencem a um tempo em que a violência viral provinha, não dos corpos, mas do assombramento da própria história colectiva. "Tu não viste nada em Hiroshima", diz ele. "Não, vi tudo", responde ela. Ele e ela, e o filme com eles, vivem habitados pela memória dos que morreram. Entretanto, no ano da graça de 2020, nós fomos mobilizados para viver através da infinita repetição discursiva da probabilidade da morte — eu, tu, ele... Escutamos as notícias, a sua rotineira contagem dos óbitos, e desse modo vamos continuando a perder qualquer vislumbre de morte. A hipótese do sagrado, que não se confunde com o comércio espiritual dos rituais religiosos, não salvaria os que vão sendo dizimados pelo COVID-19, mas com tal hipótese, através dela, mantinhamos uma relação próxima com a morte, mesmo "nada vendo", que nos intensificava a vida e o desejo de viver.
Como sair desta paisagem mórbida em que somos apenas figurantes da farsa com que a morte nos engana? Será possível viver a morte, individual ou colectiva, como algo mais do que uma notícia? Arriscaremos lidar com o impensável da morte, em vez de enchermos a praça pública com discussões pueris sobre o tom de voz com que a notícia foi lida?