17 de maio de 2020

Teatro radiofónico

Durante um forum radiofónico, há uma pessoa que participa para dar conta do drama que representam os fumos que provêm das janelas do andar de baixo, e tanto mais quanto os problemas crónicos do seu aparelho respiratório reforçam a gravidade da situação... Patético paradoxo: é claro que a pessoa em causa está sujeita a um mal-estar que carece de alguma solução no interior do seu prédio; ao mesmo tempo, a sua queixa confunde o espaço social de diálogo com o tratamento específico de um problema individual, de impossível generalização. O moderador esforça-se por superar o absurdo instalado, mas tal detalhe retórico não resolve, nem pode resolver, o fulcro da questão. Ou seja: que aconteceu para que, na mente de muitos cidadãos que investem as mais variadas energias, por vezes francamente dramáticas, neste género de programas (radiofónicos e televisivos), o colectivo seja entendido como mero índice descartável, apenas útil para instalar, ainda que de modo efémero, a teatralidade de um consultório individual? Entenda-se: que aconteceu, socialmente, para que o próprio colectivo se apresente afectivamente enquistado e, por fim, esvaziado de qualquer sentido?

PS - Que aconteceu, em particular, para que rádios e televisões não repensem os efeitos destas matrizes de diálogo e o monumental equívoco social por elas favorecido?