31 de maio de 2020

World

Fado, escreve-se na nota anterior. Fado? Como foi reconvertida a sua memória do século XX? Dois acontecimentos deste século pontuam tal reconversão: primeiro, a normalização do contrabaixo no espaço da guitarra e da viola; depois, o reconhecimento da "canção nacional" como Património Imaterial da Humanidade. Dir-se-ia que o primeiro acontecimento liberalizou a austeridade do século anterior, tendo o segundo gerado uma nova e, sem dúvida, mais dinâmica conjuntura comercial. Simbolicamente, o imaginário da casa de fados cedeu e acedeu, assim, ao turismo cultural da música world e só mesmo por insensatez poderemos minimizar os ganhos de tão ampla geografia. Resta saber se a sensatez é uma postura adequada para compreender o fado.

Deus e o Diabo

A noção de que vamos sair "melhor" (ou "pior"...) desta situação de pandemia fundamenta-se numa espécie de voluntarismo infantil com que algumas almas caridosas tentam apaziguar as dores do seu semelhante. Nada disso é novo no nosso mundo mediático (neste caso, o adjectivo mediático parece mesmo condenado a ser uma dramática redundância): o sofrimento começou por ser gerido como isco de audiências, para passar a ser encarado como item obrigatório do BI de cada cidadão. O que, apesar de tudo, introduz uma nota diferente na actual conjuntura é a ânsia determinista que perpassa na invocação — de Deus ou do Diabo — que leva a justificar essa espera de qualquer coisa de "melhor" (ou "pior"...). Dir-se-ia que vivemos de tal modo afogueados em "informação" que a sua abundância adquiriu o poder — divino ou diabólico — de materializar as nossas vidas individuais e colectivas num irrepreensível destino. Por alguma razão, a proliferação de "novos" fadistas tem feito o que pode para descaracterizar o próprio Fado: o destino já não é um fantasma existencial, apenas uma miragem com boa cotação mediática.

30 de maio de 2020

Mitologias

Na mitologia dos Descobrimentos, aprendemos que, sob a égide do Infante D. Henrique, os portugueses contemplaram o mar, invocaram a protecção divina e, em frágeis embarcações de madeira, decidiram navegar até às costas mais distantes. Neste mundo pandémico, os seus herdeiros já não navegam. Marcados pelas angústias da quarentena, apresentam-se em fato de banho, de óculos escuros e, sugestiva coincidência, também contemplam o mar: são personagens emblemáticas das notícias televisivas, proclamando a sua ânsia de praia, sol e sardinhas assadas, não necessariamente por esta ordem — mostram-se radiantes, por vezes eufóricos, mas são uma catástrofe mitológica.

A nitidez da morte

A certeza de que qualquer corpo pode estar infectado apaga as diferenças entre os corpos. Como se cada um de nós não passasse de uma derivação orgânica de um corpo imenso, dir-se-ia social e anónimo (ou emblemático de um novo anonimato social), que dispensa qualquer tipo de atenção às singularidades individuais. No plano simbólico, o efeito deste estado de coisas pode ser muito mais duradouro do que a própria pandemia: o valor de viver em comunidade já não se desenha como um imenso puzzle de muitas peças diferentes porque, no limite, a comunidade se define pelos números que sustentam a contabilidade de infectados, recuperados e falecidos. É uma árdua maneira de reaprender a nitidez indizível da morte. E talvez também uma ferida insanável no desejo de viver.

Sono, sonho

Sinais dos tempos. Ou tempo cujos sinais não sabemos decifrar. A vida sonhada vai adquirindo uma evidência que, antes, parecia sempre anulada pela circunstância do sono — o sonho era apenas uma derivação inconsequente, ainda que perversa, da nossa consciência. Agora, o sonho vence a irrisão do próprio sono e impõe-se como implacável reconfiguração de memórias, revisitadas em narrativas de acelerada nitidez, mesmo quando as identificamos como transfigurações ficcionais. Talvez que a pandemia esteja a abalar as fronteiras daquilo a que insistimos dar o nome de real, condenando-nos a uma orfandade simbólica, porque carente de qualquer forma de destino. Em boa verdade, será apenas o retorno do recalcado à nossa civilização iludida por muitas gratificações instantâneas: nem mesmo o sono consegue silenciar as manifestações da nossa vulnerabilidade. Deixámos de ter medo. Aliás, o medo deixou de ser uma coisa que se "tem", anunciando-se, a cada um de nós, no torpor do sono, na luz coada do sonho, como o gémeo que insiste em não querer nascer.

28 de maio de 2020

Back to the future

A pandemia gerou um perverso efeito mediático, rasurando da actualidade todos os temas que não tivessem a ver com o enfrentamento da doença, suas componentes médicas e incidências políticas? Talvez. E talvez fosse tão compreensível quanto inevitável. Mas agora tudo acabou. Podemos, finalmente, voltar a investir os nossos melhores dotes filosóficos na discussão dos mais graves problemas culturais que tanto nos preocupam. Primeiro tema, incontornável, decisivo, angustiante: Bruno de Carvalho tem ou não condições para voltar a candidatar-se à presidência do Sporting?

27 de maio de 2020

Gadgets

Promover o regresso às salas de cinema é uma tarefa tão meritória quanto ciclópica. Afinal de contas, desde que os filmes passaram a existir como ficheiros (legais ou pirateados, para este efeito vai dar ao mesmo), surgiu um novo modelo dominante de espectador. É um egoísta sem memória histórica: este filme é "meu", posso vê-lo aos fragmentos, de trás para a frente, posso até usar um programa de montagem e fazer clips de breves segundos para meter no YouTube... Em boa verdade, já não é um espectador porque desconhece o prazer, e também as nuances cognitivas, da duração — um filme é um acontecimento no tempo, não um gadget para usar e deitar fora.

O poço

No turbilhão de (des)informação em que vivemos, alguém diz, publicamente, que a avaliação das condições de vida nas prisões tem sido menos rigorosa do que a observação dos campos de futebol para que os jogos se reiniciem... Para lá das eventuais precisões de que a "comparação" carece, o simples facto de a afirmação cair, silenciando-se, no poço sem fundo da actualidade mediática, é perturbante.

26 de maio de 2020

O cultural

"Falemos agora de cultura..." Como se se saísse da cultura para falar de outras "coisas". Como se o cultural não fosse a abrangência da história que vivemos, dos valores que a habitam, das hipóteses de vida que, todos os dias, dentro dessa história, nascem e morrem, morrem e nascem...

25 de maio de 2020

Dominação cultural

Perpassa pelos meios de comunicação audiovisuais uma interrogação que, em boa verdade, ninguém formula. A ponto de a sua lógica contaminar os que nem sequer têm consciência da sua existência. A interrogação é esta: quando fará sentido "desconfinar" a própria informação e, para lá da pandemia, dar destaque aos chamados temas culturais? Seja como for, não há interrogação paralela para as matérias futebolísticas. Dito de outro modo: a cultura dominante é o futebol.

24 de maio de 2020

Prefácio

>>> Uma multidão, uma vida e um livro hão-de ter rosa neles — esse indesistente insinuar da paz perfeita, essa brevidade segredo exposto, revigorosa da ablação de hastes, poda.

Posso dar garante de que alguma arte curta foi porém cumprida nos actos e que foram vistas de dentro multidões tão de beleza que se podem chorar e refazer outra flor.

Hei-de ocupar-me disso. Todo o vivo é prefácio, lembrem, do mais vida.

in Cravo (1976)

23 de maio de 2020

Achamento

Formatação vocabular: as formas de apresentação do pensamento enquistaram. Eis uma dezena de fórmulas mais ou menos clássicas, mais ou menos consagradas:
— eu penso;
— eu creio;
— eu imagino;
— eu suponho;
— eu digo;
— eu arrisco dizer;
— eu deduzo;
— eu equaciono;
— eu questiono;
— eu pondero.
Agora, há ou parece haver cada vez menos pessoas a pensar, crer, imaginar, supor, dizer, arriscar dizer, deduzir, equacionar, questionar ou ponderar.
Agora, na proliferação de "debates" que caracteriza a nossa paisagem mediática, quase só se ouve: "eu acho". E o mundo parece ser obrigado a contorcer-se para confirmar o achar de alguém. O que envolve, no mínimo, um drástico empobrecimento discursivo. Eu acho.

Drama

Curiosa estética jornalística: reportagens televisivas ou radiofónicas, supostamente distintas pela transparência da sua intensidade emocional, são tratadas com música de fundo de requebros mais ou menos dramáticos. Em boa verdade, como qualquer trabalho narrativo, trata-se de um objecto com componentes ficcionais, mas os jornalistas integram a matéria musical para reforçar a crueza do documento — ficcionam, na ilusão de que o seu gesto se confunde com a máxima transparência documental. Há outra maneira de dizer isto: porventura com total candura, os autores de tais narrativas ignoram a especificidade das relações entre imagens e sons. Ou ainda: deixaram de ter qualquer relação com a história e o imaginário do cinema.

22 de maio de 2020

7 x cultura

Eis uma possível formulação de alguns temas culturais urgentes:
1) - o domínio do espaço audiovisual da ficção pelas matrizes da telenovela (dado incontornável da cultura pós-25 de Abril);
2) - a colonização temática, estética e moral imposta pelo Big Brother (televisivo) e seus derivados;
3) - a (quase) ausência de formação para o cinema — e, genericamente, para as especificidades do audiovisual — na educação de crianças e adolescentes;
4) - a ausência de um corpo crítico de ideias, em particular no ensino, para os estudantes e, de um modo geral, os cidadãos lidarem com as chamadas "redes sociais";
5) - o minimalismo das verbas do orçamento de Estado (em todos os governos, de todas as cores políticas) investidas naquilo que se convencionou chamar a área cultural;
6) - a consagração social e política do futebol como única cultura identitária dos portugueses;
7) - o enfranquecimento social e simbólico da escola como uma das matrizes fundadoras da identidade nacional.

Little brother

Pergunta-se: como pode a cultura sobreviver? A pergunta é sintomática da cegueira (cultural, precisamente) em que vivemos. Como se a cultura se esgotasse na gestão de apoios ou financiamentos. Não está em causa a importância — mais do que isso, a urgência — de preservar as condições de trabalho de todos os que, directa ou indirectamente, contribuem para os domínios da criação artística. Acontece que o factor cultural é parte integrante da dinâmica global de uma sociedade, não uma mera tabela de orçamentos.
Para realmente falarmos de cultura, necessitamos de pensar em todos os valores que circulam pelo tecido social. E compreender que esses valores não são unívocos nem homogéneos. A cultura é, por excelência, um espaço bélico. Não há nada mais cultural que o Big Brother — e a sua cultura está a ganhar, sem que ninguém pergunte o que quer que seja.

21 de maio de 2020

Sacrifícios

Há qualquer coisa de incómodo no discurso segundo o qual "vamos sair melhores desta pandemia"... Desde logo porque nele se baralham, puerilmente, a sugestão política ("vamos ser melhores a organizar a nossa vida") e a purificação moralista ("vamos substituir o mal belo bem"). Mas sobretudo porque se trata de um discurso banalmente determinista, próximo do aparato teleológico que ocupou muitas zonas das programações televisivas: "vamos ser bondosos para o bem de todos". Como se existisse um sistema de causalidade social em que, quais atletas de alta competição, cada um vai encontrando a forma perfeita através dos sacrifícios mais ou menos castigadores dos treinos, desse modo reforçando a consistência redentora da comunidade. Vivemos, aliás, numa sociedade sacrificial em que as dores individuais são tratadas, exponenciadas e consagradas como ritual de acesso aos destinos colectivos — cultivamos a piedade como mezinha social, desse modo esquivando-nos ao difícil labor de conhecer e, por fim, reforçando o desconhecimento do outro.

Hiroshima

As imagens iniciais de Hiroshima, Meu Amor (1959) adquiriram, agora, a vibração sublime, quase obscena, de uma utopia: os amantes nus, enlaçados, desfazendo-se no seu calor, pertencem a um tempo em que a violência viral provinha, não dos corpos, mas do assombramento da própria história colectiva. "Tu não viste nada em Hiroshima", diz ele. "Não, vi tudo", responde ela. Ele e ela, e o filme com eles, vivem habitados pela memória dos que morreram. Entretanto, no ano da graça de 2020, nós fomos mobilizados para viver através da infinita repetição discursiva da probabilidade da morte — eu, tu, ele... Escutamos as notícias, a sua rotineira contagem dos óbitos, e desse modo vamos continuando a perder qualquer vislumbre de morte. A hipótese do sagrado, que não se confunde com o comércio espiritual dos rituais religiosos, não salvaria os que vão sendo dizimados pelo COVID-19, mas com tal hipótese, através dela, mantinhamos uma relação próxima com a morte, mesmo "nada vendo", que nos intensificava a vida e o desejo de viver.
Como sair desta paisagem mórbida em que somos apenas figurantes da farsa com que a morte nos engana? Será possível viver a morte, individual ou colectiva, como algo mais do que uma notícia? Arriscaremos lidar com o impensável da morte, em vez de enchermos a praça pública com discussões pueris sobre o tom de voz com que a notícia foi lida?

19 de maio de 2020

Os mortos não morrem
para satisfazer a piedade dos vivos

Fenómeno recorrente, típico da miséria "social" que contamina as nossas comunicações virtuais: no dia a dia, as caixas de comentários dos órgãos de informação, para já não falar das trocas em "rede", estão cheias de imprecações e insultos que pervertem a própria missão jornalística (o facto de a maior parte desses órgãos de informação acolherem tais desmandos é um tema que valeria a pena recolocar nas nossas reflexões políticas); o certo é que quando morre alguém com alguma dimensão pública, os comentários mudam abruptamente de tom e assistimos a uma maré de declarações piedosas que, provavelmente, confortam as incertezas dos vivos — como se os mortos morressem para garantir e reforçar o valor corrente da piedade.
Serão as mesmas pessoas que, sem problemas de consciência ou achaques da alma, deslizam da grosseria para a catequese? Impossível esclarecer tal dúvida que, ainda assim, não deixa de ser sugestiva. O certo é que o fenómeno se impôs como norma forte da paisagem virtual, por vezes gerando situações absurdas e, no limite, ofensivas — recorde-se o que aconteceu no momento do falecimento de Manoel de Oliveira: depois de décadas de difamação, muitas vezes protagonizada por cidadãos que faziam gala em dar conta do seu glorioso desconhecimento dos filmes do cineasta, a sua morte conferiu-lhe instantânea santificação "social".

>>> Quand il faudra fermer le livre ce sera sans regretter rien.
J'ai vu tant de gens si mal vivre et tant de gens mourir si bien.

LOUIS ARAGON
[ Godard ]

Evidentemente

A praga do "naturalmente" prolonga-se e, de alguma maneira, reforça-se na generalização do "evidentemente". O seu utilizador pode estar a introduzir um ponto de vista específico, sem nada de unívoco ou universal. Pode até esse ponto de vista carrilar juízos de valor muito concretos sobre um evento social, um gesto político ou uma vivência mais ou menos colectiva. Em todo o caso, isso não o impede de lançar o dom da sua evidência como um axioma a que, por princípio, o interlocutor (no limite, uma audiência) se deve submeter, sem hesitação ou protesto.
"Por que é que diz evidentemente?" — eis uma pergunta que, por regra, ninguém faz; a sua cândida formulação poderia, pelo menos, introduzir uma salutar distanciação na paisagem mediática.

18 de maio de 2020

Paralaxe

Há quem, com máscara, seja humanamente mais interessante.
Ou que pareça ter algo de humano.
São os novos erros de paralaxe.

17 de maio de 2020

Espectáculo

O diálogo social passou a medir-se por polegares ao alto e corações coloridos. Há de tudo nesse universo de muitos contrastes e contradições — celebrá-lo como o paraíso prometido será tão equívoco quanto sobre ele lançar um anátema global. O mais perturbante é o nascimento (e o eco social, precisamente) dos novos "especialistas" das medidas virtuais. Segundo eles, o nosso modo de vida tem como único ponto de fuga a rede de acontecimentos sancionados por uma qualquer acumulação de números "espectaculares". Procedem como se o espectáculo fosse uma medida por eles inventada. Arrogância virtual, eis a nova lei moral.

Um rosto

Esguio, algo assimétrico, barba mal tratada, olhos indiferentes aos movimentos do mundo, o rosto do galã não tem nada de sedutor, nem sequer ilustra um qualquer padrão de beleza, antigo ou contemporâneo da sua imagem. Em qualquer caso, não desviamos o olhar da sua pose e movimento. Por cada sobressalto da pele, deduzimos o seu menosprezo pelas singularidades do humano, a ponto de pressentirmos a indiferença afectiva que pontua cada frase que sai da sua boca; não precisamos de o ouvir para detectar a grosseria, disfarçada de afectação burguesa, que a sua voz transporta. Velha lição iconográfica — o filme é de 1920, mas vê-lo é entrar numa escuta radicalmente reveladora.

Teatro radiofónico

Durante um forum radiofónico, há uma pessoa que participa para dar conta do drama que representam os fumos que provêm das janelas do andar de baixo, e tanto mais quanto os problemas crónicos do seu aparelho respiratório reforçam a gravidade da situação... Patético paradoxo: é claro que a pessoa em causa está sujeita a um mal-estar que carece de alguma solução no interior do seu prédio; ao mesmo tempo, a sua queixa confunde o espaço social de diálogo com o tratamento específico de um problema individual, de impossível generalização. O moderador esforça-se por superar o absurdo instalado, mas tal detalhe retórico não resolve, nem pode resolver, o fulcro da questão. Ou seja: que aconteceu para que, na mente de muitos cidadãos que investem as mais variadas energias, por vezes francamente dramáticas, neste género de programas (radiofónicos e televisivos), o colectivo seja entendido como mero índice descartável, apenas útil para instalar, ainda que de modo efémero, a teatralidade de um consultório individual? Entenda-se: que aconteceu, socialmente, para que o próprio colectivo se apresente afectivamente enquistado e, por fim, esvaziado de qualquer sentido?

PS - Que aconteceu, em particular, para que rádios e televisões não repensem os efeitos destas matrizes de diálogo e o monumental equívoco social por elas favorecido?

Política e consciência

Por estranha perversidade, a situação de pandemia veio revalorizar — ou, pelo menos, relembrar — que as relações entre os membros da classe política e os cidadãos em geral não se esgotam no simples gesto da escolha/voto. É bem verdade que, nestes tempos de saturação mediática, muitas dessas relações existem apenas e só através de filtros televisivos, condição que, a história assim o ensina, tanto pode favorecer formas de eficácia como desvios demagógicos. Mas não será menos verdade que a sociedade tem estado a viver uma inesperada lição de pedagogia política em que, na melhor das hipóteses, se reforçará a consciência (política, justamente) da inscrição de cada um no território específico da colectividade, com as suas regras fundadoras e dialécticas interiores. Resta saber se essa melhor das hipóteses não passa de uma outra máscara, teatral e volátil, que se esgota no medo transitório do vírus.

16 de maio de 2020

Centeno & Ronaldo

Os paralelismos entre Mário Centeno e Cristiano Ronaldo continuam a circular pelo espaço do debate político. Por distracção ou ingenuidade, quem os usa parece acreditar que, através deles, ainda há debate. E mais: que esse é um debate político.

15 de maio de 2020

Drones

[1963]
Em Os Pássaros (1963), quando Hitchcock nos mostra uma perspectiva aérea de Bodega Bay, na iminência de ser atacada pelas gaivotas, a visão "do alto" é tanto mais perturbante quanto nos remete para o ponto de vista dos próprios pássaros, organizando-se para se lançarem sobre os pobres humanos — será o ponto de vista da divindade, sugerem alguns, esquecendo que nada no filme nos remete para qualquer transcendência, tudo acontecendo no plano do mais cru domínio material. Agora, o suposto olhar divino confunde-se com uma nova retórica visual, ou seja, a omnipresença dos drones: os movimentos ao longo das ruas vazias geram imagens que se confundem com a liofilização mediática, eventualmente "poética", da doença. Como se o torpor visual de um jogo de video tivesse sido promovido à condição de signo social da nossa solidão. Sintoma estético revelador: ninguém arrisca fazer o que Hitchcock faz, isto é, um plano fixo. 

14 de maio de 2020

Trump

Neste dia, a contabilidade de asserções falsas de Donald Trump vai em 5276 (desde a sua tomada de posse, a 20 de Janeiro de 2017, qualquer coisa como 30 mentiras por semana). Alguns programas de humor vão desmontando as incongruências por ele propaladas, em particular as que têm a ver com o surto do COVID-19, com um notável misto de contundência e elegância. Em qualquer caso, a concentração na "figura" do Presidente dos EUA distancia-nos daquilo para o qual, em boa verdade, não temos medida. Ou seja: quantos acreditam nessas mentiras? Mais do que isso: que faz com que a sua base eleitoral persista, levantando sérias dúvidas sobre a possibilidade de impedir a sua reeleição? O que, enfim, nos remete para uma questão que, quase sempre, na aceleração fulanizada do nosso espaço mediático, é evitada. A saber: no mundo globalizado em que vivemos, o que é, e como funciona, a democracia?

Psicologia política

Há muitas questões políticas que surgem socialmente formuladas através do perfil "psicológico-mediático" da personalidade de algum ou alguns actores da própria cena política. Dito de outro modo: o confronto inerente à política deu lugar ao conflito enraizado na fulanização. Talvez valesse a pena perguntar se os cerca de 5 milhões de abstencionistas (que se tornaram uma norma portuguesa) não resultam, em grande parte, dessa configuração pública da acção política.

Marionetas

A cultura clássica do escrutínio social, nomeadamente no domínio jornalístico, transfigurou-se em tribunal público de marionetas. Como se, entre acusados e acusadores, protagonistas e figurantes, trabalhássemos todos para a redenção através da catástrofe colectiva.

13 de maio de 2020

A cultura da indiferença

Desastre cultural. Parecia ser uma questão geracional, típica dos "jovens" educados e, sobretudo, deseducados a pensar que o cinema é a acumulação pitoresca e pueril, sem nexo nem datas, de fragmentos de filmes publicados no YouTube. Mas tornou-se mais do que isso: passou a ser uma norma, historicamente cega, simbolicamente morta, do território audiovisual. A saber: já não se diz que um filme resultou de um acto de filmagem, precisamente, ou rodagem; passou a dizer-se que o filme foi gravado. Dito de outro modo: a miséria de linguagem das telenovelas tem mais poder que o património de mais de um século de filmes — já não se filma, grava-se. O que faz com que haja almas ingénuas que, sem que o coração lhes estremeça, possam dizer que Bergman "gravou" Persona em 1965. Eis o horror da indiferença como matriz cultural.

Da gratificação

A explicação da decadência do livro através da predominância dos suportes digitais terá muitas e fortes motivações, indissociáveis de uma cultura tecnológica & económica que, como é óbvio, já não obedece aos padrões que fizeram o essencial — ou, talvez, a essência — do século XX. Especula-se, fazem-se cálculos, avançam-se explicações mais ou menos voluntariosas e voluntaristas sobre a "persistência" do livro enquanto objecto virtual, sobre o maior ou menor número de horas de leitura que cada um faz. Quase sempre, todas essas boas vontades analíticas dispensam qualquer tipo de atenção ao poderosíssimo mundo dos videojogos e seus derivados (incluindo programas de carácter televisivo) e, mais especificamente, à cultura de gratificação imediata que tais dispositivos foram instalando e instilando no tecido social. Um livro, com 50 ou 500 páginas, pressupõe, ou melhor, convoca-nos para um tempo de envolvimento em que a dita gratificação se encontra suspensa, dir-se-ia em estado de "suspense" — qual o seu objecto, como habitar a sua duração? Eis o prazer prometido que as multidões passaram a renegar.

Miséria de escrita

Os espaços de comentários online expõem uma trágica miséria escrita — e miséria de escrita. É bem verdade que, na esmagadora maioria dos casos, quem os utiliza apenas visa instalar algum tipo de irrisão mais ou menos insultuosa. Em todo o caso, vale a pena perguntar se tal postura não começa, precisamente, num entendimento fútil da comunicação, aquém até de um conceito meramente instrumental da escrita. Depois, há programas, projectos e comoventes boas vontades para valorizar a língua portuguesa — nenhum deles parece possuir a percepção da sua própria inoperância face a esta vivência festiva, festivamente niilista, do contrato social.

12 de maio de 2020

Pequeno sobressalto político

A ideia de doença é a ideia que suspende todas as outras ideias. Aliás, que as relativiza. Porque nos reaproxima da ideia de morte. E como a morte não se deixa agarrar como ideia, a ideia de doença relança-nos no desejo de viver — eis a política.

11 de maio de 2020

"Vai ficar tudo bem"

A proliferação de discursos paternalistas e pueris é asfixiante: o "vai ficar tudo bem" perdeu a sua original pertinência afectiva para, de tão repetido e formatado, circular como um fogacho retórico capaz de esvaziar qualquer relação de conhecimento (entenda-se: atenção, interrogação, vontade de saber) com o que está a acontecer à nossa volta. De tal modo que qualquer discurso médico ou científico razoavelmente céptico, ou apenas resistente ao simplismo profético, tende a ser alvo de uma dúvida mais ou menos implícita: "Quer então dizer que não vai ficar tudo bem? Que está tudo mal? E de quem é a culpa?" Ou como a infantilização social das relações paralisa a arte de viver — mesmo em pandemia, já não se pode ser brechtiano.

10 de maio de 2020

Da vida social

Na CNN, um investigador dá conta da volubilidade do Facebook: nas suas páginas, circulam teorias da conspiração em torno do COVID-19, teorias que, de facto, em sentido literal e simbólico, funcionam como poderosas viroses. Mark Zuckerberg surge num breve depoimento, garantindo que a sua empresa está atenta, rapidamente eliminando tais mensagens (a reportagem garante também que, em qualquer caso, a velocidade de propagação das mentiras é assustadora). Não é a boa fé de Zuckerberg que está em causa — acontece que ele inventou um sistema de "comunicação" que favorece este género de eventos "sociais". Vigiar as imposturas que o Facebook pode acolher é a inevitável resposta do bom senso. Em qualquer caso, tal atitude expõe um outro tipo de verdade que esse mesmo bom senso nunca quis enfrentar. A saber: o Facebook não é a consagração ideal, muito menos idealista, de uma transparência lírica, absoluta e inexpugnável. É, isso sim, através do aparato cândido da transmissão de dados, um novo conceito de social. Que nos faz viver socialmente mal.

Escutar

Axioma comunicacional destes tempos (em boa verdade, já vindo de tempos anteriores): pela pose e pela voz, ou apenas pela voz no caso da rádio (afinal de contas, a voz envolve também uma pose), é possível detectar o grau de interesse — entenda-se: interesse pelo outro — de quem entrevista alguém. Em muitos casos, a única vibração que passa é esquemática e pueril: o que se procura é provocar algum tipo de contradição nas palavras do entrevistado, quase sempre acumulando insinuações que o caracterizem como potencial culpado de algo. Há outra maneira de dizer isto: propaga-se um modelo de anti-diálogo que se fundamenta num princípio, não de confronto de ideias, mas de conflito de posturas. Ou ainda: escutar, saber escutar, é um valor debilitado no nosso sistema social de circulação de informação. Provavelmente, devemos encurtar a frase: escutar, saber escutar, é um valor debilitado no nosso sistema social — ponto final.

Naturalmente

Naturalmente. A palavra repete-se no discurso dos "especialistas" dos mais diversos domínios, servindo de muleta retórica para legitimar as argumentações ou valores do próprio discurso, implicitamente apresentado como gerador da naturalidade que exibe e universaliza. Exemplo histórico: em momento futebolístico da mais radical miséria televisiva, o repórter observava os adeptos da equipa derrotada a colocarem-se estrategicamente junto à saída para as cabines, cuspindo no árbitro quando este abandonava o terreno; usando a sua prodigiosa capacidade de síntese, o repórter introduz uma delicada pincelada descritiva, en passant: "... os adeptos do clube da casa, naturalmente agastados com o árbitro..."
Não haveria maneira mais didáctica de explicar o vazio que contamina muitas áreas da nossa comunicação: num tempo em que o próprio conceito de natureza coexiste de modo perturbante com qualquer ideia de civilização, vivemos, ou somos convocados para viver, com naturalidade — sorria, está a ser filmado, dizem os avisos das câmaras de vigilância.

9 de maio de 2020

A guerra das linguagens

A cultura. Defender a cultura. Multiplicam-se discursos, reivindicações, abaixo-assinados — é preciso defender a cultura. De tal modo que se torna delicado, potencialmente equívoco, lembrar a necessidade, porventura a urgência, de questionar a própria formulação dessa "defesa da cultura". Porquê? Porque não se trata de levantar dúvidas sobre a seriedade dos que a subscrevem. Trata-se, isso sim, de perguntar como é possível nomear esse objecto mágico a que se dá o nome de cultura como se a sua paisagem se reduzisse à maior ou menor disponibilidade de recursos financeiros (cuja importância não está em causa) para concretizar determinadas actividades, específicas de cada área? Trata-se, em particular, de retomar o voto de Rossellini, formulado há meio século, reconhecendo que não é possível elaborar qualquer ideia cultural — entenda-se: culturalmente operante — se não tivermos em consideração a existência e os muitos poderes inerentes ao espaço televisivo (e, agora, já em tempos pós-rossellinianos, aos circuitos virtuais de imagens e sons). Nada disto envolve qualquer demonização desse espaço televisivo, suficientemente diverso e contrastado, recheado de diferenças e profundas contradições para que dele possamos fazer qualquer descrição unívoca. Acontece que, no cruzamento mais tradicional do "artístico" e do "político", persiste a noção mecânica e voluntarista, nem sequer consistentemente estatal, de que "basta" criar condições materiais para que os objectos culturais se possam fazer. A cultura fica assim reduzida a uma espécie de coutada ideal e idealista em cujos terrenos protegidos só se pode cumprir a vocação artística dos humanos que somos — um pouco como se se quisesse problematizar as tragédias geradas pela poluição do planeta deixando de lado os automóveis porque, além da sua inequívoca e universal utilidade, muitos deles são de uma esplendorosa beleza.


Em boa verdade, o simples reconhecimento de que a cultura é uma realidade clivada, não unificada, muito menos unívoca, talvez nos possa ajudar a enriquecer o pensamento. Por um lado, importa nunca abdicar do princípio humanista que garante a cada um o seu trabalho e a sua dignidade; por outro lado, importa também não ceder a um ecumenismo hipócrita que nos obrigue a considerar que o humanismo, qual programa profilático, funciona como apagador das clivagens culturais.


Muitos protestos ditos culturais não conseguem formular-se através de outra linguagem que não seja, no fundo, a linguagem de raiz capitalista que, ironicamente, é contestada pela esmagadora maioria deles. A saber: "invista-se" para que haja "produção". Como se fosse possível ignorar que não há linguagem culturalmente unificadora, desde logo no plano financeiro. Como nos lembrou Barthes (contemporâneo de Rossellini, helás!), a vida cultural define-se a partir de uma incessante, talvez interminável, guerra das linguagens. Com muito ou pouco dinheiro, o cultural está sempre dividido sobre si próprio. No limite, importa instaurar uma nova geometria de conjuntos — não há cultura, mas culturas.

Sistemas fortes

>>> O que é um sistema forte? É um sistema de linguagem capaz de funcionar em todas as situações, e cuja energia subsiste, seja qual for a mediocridade dos sujeitos que o falam: a estupidez de certos marxistas, de certos psicanalistas ou de certos cristãos não abala em nada a força dos sistemas, dos discursos correspondentes.

ROLAND BARTHES
in O Rumor da Língua
Edições 70, Lisboa (1987)

8 de maio de 2020

Video

Multiplicam-se os gestos evocativos de outras pandemias. Ou melhor, de narrativas, sobretudo livros e filmes, que trataram histórias, personagens e contextos que possam ter algum valor catártico no nosso presente. Não vejo, não ouço, ninguém a lembrar os jogos de video como modelo de percepção que, de alguma maneira, nos possa acompanhar. O que não deixa de envolver um brutal sarcasmo: afinal, uma das formas de ficção que tantos consomem (milhões e milhões, garantem as estatísticas) não tem nada para nos dizer, algo que, pelo menos, nos recorde que a dimensão humana existe, persiste e resiste. Em boa verdade, tal silêncio não tem nada de surpreendente: o video como instrumento de projecção do jogador que vive no ecrã os combates de outros não passa de um artifício físico, pueril e redutor, que promove a confusão entre os gestos mecânicos de interacção com o ecrã e algum tipo de experiência realmente material. Há nesse esquema de consumo uma desumanização que, agora, surge exposta na sua patética inoperância comunicativa. Um livro não nos salva da pandemia, mas não deixa de ser um objecto palpável. Um filme não nos liberta do medo, mas nasce de algum desejo de olhar o mundo à nossa volta.

NOTA - Talvez que toda esta conjuntura, plena de componentes trágicas, nos obrigue a repensar os valores dominantes da chamada cultura popular.

5 de maio de 2020

Máscaras

Máscara. Promessa de sensualidade: quem está, ou que está, por trás daquela barreira? E insinuação inquietante: o nosso património narrativo garante-nos que é a morte essa entidade que sempre se apresenta mascarada. Vivemos, assim, o avesso da utopia romântica: a ocultação do rosto não envolve nenhuma transcendência, a imagem truncada do outro não passa de um aparato social que se confunde com a ameaça microscópica do vírus. Num mundo assim, não parece possível ensinar a beleza dos filmes de Murnau.

City Girl (1930)

Contra a comunicação

A. No nosso tempo social, que se pode fazer, que pode acontecer que não seja automaticamente "mobilizado" para funcionar como intervenção, declaração, tomada de posição, mensagem ou tribunal?

B. Onde nos conduz este bruaá colectivo, dominado pela obsessão de encerrar todos os gestos humanos em algum significado, supostamente transparente, que os congele como coisa unívoca e definitiva?

C. A utopia parece consistir, agora, em abrir espaços em que algo possa enquistar-se face à agitação circundante e nada significar, resistindo a ser instrumentalizado pela ilusão de que estamos sempre a comunicar. Subitamente, o silêncio pode ser revolucionário.

4 de maio de 2020

Mediatização

Há também uma pan-mediatização da nossa existência. Como se tudo o que é humano necessitasse de uma compulsiva configuração mediática para adquirir pertinência social. Daí nasce uma asfixia comunicativa que arrasta a noção de que nenhum laço humano é pertinente, porventura legítimo, se não se apresentar sancionado por algum discurso mediatizado ou mediatizável. Daí também que os discursos "especializados" tendam a encarar (ou a ser forçados a encarar) os domínios que abordam tendo como ponto de fuga a enunciação de uma qualquer dicotomia "positivo-negativo". Aquilo que quase todos os comentadores de futebol passaram a assumir — sancionar cada resultado como "justo" ou "injusto" — tende a ser uma matriz generalizada, ancorada numa omissão obscena. Assim, se é verdade que qualquer noção de justiça decorre de uma lei em que o colectivo se reconhece, está por esclarecer qual é a lei que transforma a vitória da "pior" equipa num resultado "injusto"... Será que passámos a habitar um mundo de tal modo normativo e normalizado que já não é possível jogar mal e ganhar um jogo de futebol? Barthes tem razão: há uma censura que impede de falar, outra que obriga a dizer.

3 de maio de 2020

Calendário

O efeito de desmembramento do calendário é tanto mais perturbante quanto, de uma maneira ou de outra, toda a vida social se fundamenta na previsão/organização de acontecimentos materiais que vão acontecer. Por mais que governos, empresas e trabalhadores refaçam agendas e relancem actividades, passámos a viver numa curva do tempo em que resistimos a olhar para trás, na certeza de que aquilo que se vislumbra em frente é sempre escasso e impreciso. Porventura intolerável, é o facto de isso implicar uma outra consciência da nossa condição de seres mortais. Intolerável ou criativo.

2 de maio de 2020

Castidade

Dir-se-ia que a assunção de uma visão política do mundo passou a ser entendida, apenas e só, a partir da possibilidade — encarada como uma forma suprema de liberdade — de os seus signos serem exibidos no espaço público, logo na paisagem mediática. Dir-se-ia também um entendimento casto da democracia. É esse o novo social, esquemático e infantil, agressivo na reivindicação, vazio no pensamento. Talvez ingénuo, o que lhe empresta uma aura de comoção.

1º de Maio

Instala-se alguma discussão, agitada e efémera, na sequência das comemorações do 1º de Maio. Por analogia ou contraste, a discussão envolve também as celebrações religiosas que os católicos podem ou não podem promover. Mesmo com pandemia, continuamos a viver numa sociedade em que as encenações colectivas são dirimidas como mera questão de ocupação dos espaços públicos — questão vital, sem dúvida, em particular no momento actual, mas que dispensa qualquer tipo de reflexão sobre aquilo que se encena. Sobre a sua historicidade.

Cientificamente
— feat. Miles Davis

Cenário de pandemia. Mãos potencialmente infectadas ou infectáveis. Quando alguém informa, cientificamente, e como argumento único, que usar luvas é irrelevante porque a nossa tendência é levar as mãos à cara... não seria mais razoável dizer que, mesmo com luvas, talvez seja melhor não tocar a cara com as mãos? Ou, talvez ainda melhor, tirar as luvas e pôr um pouco de Miles a tocar? Tocar.

1 de maio de 2020

A corrente do jogo

"Contra a corrente do jogo" — a expressão, consagrada nos comentários futebolísticos, é bem reveladora da ligeireza com que se encara a omnipotência do tempo. Dir-se-ia que quem a profere acredita que o jogo integra e, de alguma maneira, consagra um determinismo ("corrente") que a própria contabilidade dos golos só poderá e deverá confirmar.
"Hans Castorp já não sabia distinguir o «ainda» e o «de novo», de cuja mistura e confusão resulta o «sempre» e o «nunca», situados fora do tempo." Dito de outro modo: Hans Castorp não é comentador de futebol, não finge conhecer, porventura controlar, essa "corrente" cuja racionalidade lhe permitiria, talvez, ainda que por dramática ilusão, conceber a existência, a sua e a dos outros, como um mero decalque da linearidade do tempo.
De modo drástico, infinitamente perturbante, a doença põe à prova a nossa propensão para julgarmos que conhecemos e dominamos a arbitrariedade dos lances seguintes. Por uma razão que, em boa verdade, desafia o próprio entendimento do jogo. Essa razão diz-se por uma palavra austera, radical em todas as línguas: Morte, Muerte, Mort, Death, Tod... Daí o combate para que não estávamos preparados: lidar com a morte, apor algumas necessárias palavras à sua imponderabilidade, exaltando a vida. E reconhecendo que o desespero sintático que a morte instala nas narrativas da vida não se resolve denunciando o incumprimento da "corrente do jogo".